O SONHO. OU UMA HIPINOTIZANTE CELEBRAÇÃO DO PODER DE CONEXÃO E COLABORAÇÃO HUMANA

Em Paris, França, (acentuo isso porque há uma Paris no estado do Texas, USA. E “Paris, Texas” é um intrigante filme de Wim Wenders com a música do Ray Cuder). Pois na Paris da França acontece anualmente um jantar que reúne milhares de pessoas, todas vestidas de branco, sem nenhuma motivação política ou comercial. É uma hipnotizante celebração do poder de conexão e colaboração humana. A organização desse jantar é um mistério. Um comitê anônimo decide, a cada ano, quem será o anfitrião e onde será o local do jantar denominado “Diner En Blanc”. Esse foi realizado num parque, ou praça, muito bem cuidado, como deve ser. As pessoas, todas de branco chegam calmamente, e aos poucos vão tomando seus lugares. Eles mesmos trazem mesas e cadeiras; sua comida e bebida. A meia noite o jantar é encerrado e todos se retiram do local com elegância em perfeita harmonia. Há um vídeo que um amigo mandou-me. Veja agora antes de continuar lendo essa crônica, se não você não vai entender nada. DIGITE http://vimeo.com/59918869

Depois de assisti-lo, fui dormir. E sonhei. Sonhei que esse “Diner En Blanc” estava acontecendo no Brasil. Mas em que cidade brasileira? São tantas que escolher uma delas seria injusto com as demais, raciocinou meu cérebro já em sono profundo e ele escolheu Porto Alegre. Talvez porque esta é a cidade onde nasci e ela não me sai da lembrança onde estão alguns dos bons sonhos que sonhei. O jantar era no Parque Farroupilha, também conhecido como Redenção, com seus 400 mil m² de área. Um dos mais belos e tradicionais entre os três outros da cidade. Sempre bem cuidados. E aí começou a chegar gente vestida com roupas de todas as cores trazendo mesas, de todos os tipos; algumas com o logotipo da Brahma; essas sem toalhas. Cadeiras e bancos de todos os tipos, alguns com três pernas cobertos com pelegos. Eram mais de 30 mil pessoas que chegavam em algazarra vindas de todos os bairros e vilas (que é como lá chamam as “favelas” agora conhecidas como “comunidade”) dos quatro cantos da cidade e até de além. Um grupo de pessoas veio de Cachoeirinha, na região metropolitana, outro até de Santo Antônio da Patrulha, distante uns 70 km pela Free Way. Esses trouxeram “sonhos” – um bolo em forma de almôndega, pingando óleo da fritura, coberto com açúcar e recheado com marmelada - para saborear com café puro, sem leite.

O jantar não terminou a meia noite, como em Paris, pois além de começar as 23 h, e não ao entardecer como lá, na virada do dia é que ficou muito interessante. Ao invés de alguém chegar com um piano, como em Paris, é uma invernada artística do CTG 93 que começa a se apresentar. Iniciam dançando o Pezinho, depois o Maçanico, o Xote de Carreirinha para em seguida encerrar com a apoteose da Chula e, finalmente, os trovadores entram em cena. Tudo isso acontece atrás do Auditório Araújo Viana. Os cavalos dos piquetes Farroupilha cagam e mijam amarrados aos Ipês e aos Jacarandás da avenida José Bonifácio, onde uma imensa churrasqueira toma conta do canteiro do meio, que vai da esquina da avenida João Pessoas até, mais ou menos, próximo à igreja, já lá no Bom Fim, bairro do Fedor, do Passaporte para o Inferno,e de tantos outros locais e coisas inesquecíveis de outrora. Pois a churrasqueira era um troço pra mais de 200 metros de comprimento. Enquanto a carne do assado daquele gigantesco braseiro não fica ao ponto de mal passado, que é como deve ser a carne do churrasco, as pessoas tomam hectolitros de chimarrão. A erva mate era de graça; uma promoção da Fontana.

Nos canteiros do parque junto a Avenida João Pessoa, que margeia um dos lados da Redenção, onde havia uma Pira da Pátria, há mais de 117 anos, está o pessoal que veio das vilas. Sem mesas e cadeiras eles se acomodam na grama orvalhada da noite fria; mas quem se importa com as bundas molhadas? É hora de abrir as viandas com frango frito e farofa e as garrafas de cachaça, que é pra espantar o frio da meia noite. Nas latas usadas de Cêra Cachopa – “o brilho que faz a dona de casa brilhar” – estão as fatias de bolo de milho já encharcadas com calda de pêssegos, pra sobremesa, e o pão d´água de meio quilo enrolado num pedaço de pano de saco de farinha de trigo serviria para matar a fome mais tarde. A Bateria da Unidos da Volta do Guerino alegra o povão que samba no pé com uma ginga que lembram cariocas dançando a Chula.

O chafariz que fica entre o monumento aos pracinhas mortos na Segunda Guerra Mundial e o espelho d’água está magnificamente iluminado com jorros de “águas dançantes” nas cores do arco Iris, uma iniciativa da Associação Gaúcha de Gays Machos e Simpatizantes, em associação com a GLBTXHURRDC, que ninguém sabe exatamente o que significa, e o Potreiro de Botinudas, Sapatões e Mulheres Simpatizantes que estão unidas nessa festa/jantar, pois um grupo de representantes dessas associações assistiu – sem participar – o Diner En Blanc em Paris. É compreensível que aqui esse jantar tenha passado por algumas adaptações à cultura regional. Compreensível e previsível. Um enorme “paredão” tocava “Y.M.C.A”, alternado vez ou outra com “Macho,Mem” e “I Will Survive”. Curioso é que quando uns pingos d’água desabaram do céu, o som do “paredão” tocava “It’s Raining Man”.

O pessoal do MST e da Via Campesina não compareceu ao Diner En Blanc de La Redencion por que não entenderam o “espírito da coisa”, me disse um solitário simpatizante, segurando um gadanho.

Às 2 horas da madrugada a Redenção virou uma Praça Tahrir a la sud America. A Brigada Militar chegou de supetão cercou o parque e avançou sobre os comensais do Diner En Blanc, Noir, Mulato, Cafuzo, Mameluco, Sarará, Caburé, Gaudério, Gringo, Correntino e de Judeus do Bom Fim – pela proximidade – atirando bombas de efeito imoral e indecente, balas de borracha feitas de ferro, pulverizando com esprei de pimenta malagueta e dispersando gás sufocante e lacrimoso, agindo como toda e qualquer polícia de todas as partes do mundo. E deu de relho. A correria foi geral e a confusão brasileiríssima. Subitamente apareceram bandeiras do PCdoB, do PSTU, da CUT, da UNE, dos CTGs Porteira Aberta, Querência do Pago e Missioneiros do Caiboaté; e o estandarte do bloco carnavalesco Sociedade Cultural e Esportiva Caciques Caí Gangs, que lá estavam luxuosamente vestidos de índios, vindos de São Sebastião do Caí, além de centenas de faixas e cartazes protestando contra e a favor de qualquer coisa. Não vi bandeiras do PT. Uma enorme faixa estendida na calçada do espelho d´água dizia: “SIRVAM NOSSAS FAÇANHAS DE MODELO A TODA A TERRA”. Caramba, que pretensão! pensei sonhando. Um grupo vestido de preto, que não era do Black Bloc, exigia a imediata desocupação dos mortos do Cemitério São Miguel e Almas para ali fazer um assentamento para os Sem Tetos da Capital. Na área do antigo chamado Mini Zoo a Associação de Defesa de Todo e Qualquer Animal Irracional – ADETOQUAI - exigia o retorno dos bichos que dali haviam sido retirados e mandados pra Santa Maria, ou Pelotas, não tinham certeza.

No Recanto Oriental, com todas as lâmpadas apedrejadas, e assim totalmente no escuro, milhares de pessoas de todos os sexos, pois que são tantos, faziam sexo desvairadamente alheios à ação dos “vândalos” e da “natural” reação da Brigada Militar defendendo o patrimônio público distribuindo pauladas a torto e a direito e também gozando, por que a polícia quando bate, goza. É o único momento de lazer que eles têm, coitados.

Assim terminou o “Diner En Blanc da Redenção”. Sem ninguém vestido de branco, sem alvas toalhas de mesa, sem taças de cristal, pratarias, delícias que só os epicuristas sabem identificar, 13 mil pessoas jantando e saindo da praça exatamente a meia noite depois de ascenderem aqueles “foguinhos estrelinhas”, um belo espetáculo.

Acordei assustado, desorientado balbuciando “Bah, mon dieu! Bah, mon dieu!” Sentado na beira da cama, procurando os chinelos, sonolento percebi que foram aqueles “foguinhos estrelinhas” que, aqui no Brasil, os idiotas, costumam acender, em boates hermeticamente fechadas, amarrados nos gargalos das garrafas de “champagne”, que me enxotaram do sonho de um colorido jantar na Redenção.

CESAR CABRAL
Enviado por CESAR CABRAL em 17/08/2013
Reeditado em 01/09/2013
Código do texto: T4438992
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