As inconveniências do afeto

Num dos meus raríssimos momentos em frente à TV, assisti na rede paga a um programa sobre animais de estimação. É a versão brasileira de um seriado conduzido por um tratador/adestrador famoso, intitulado “O Encantador de Cães”. O nacional se chama “Missão Pet” (ainda que a palavra “pet” nada tenha de nacional, mas são coisas corriqueiras da nossa cultura colonizada.). O modelo de ambos é o mesmo: pessoas com animais de estimação problemáticos entregam aos adestradores estrelados suas preocupações, e estes, através de orientações aos donos como estímulos, brinquedos, condutas e muitos petiscos, fazem com que os bichinhos revertam seu comportamento inconveniente inicial e se tornem dóceis e fofos companheiros.

Sempre me divirto quando assisto a esses programas, pois, além de me encantar com os belos e mal comportados cães e gatos, ainda tiro algumas lições para aplicar com o meu vira-latas, que nem sempre se mostra um cão de boas maneiras. Mas desta última vez, um misto de sensações confundiu meu raciocínio sobre o que é ter um animal de estimação e sobre de que forma deve caminhar esse afeto ancestral.

O programa tratava basicamente de um casal sem filhos, morador de um apartamento, que tinha inúmeros problemas com o animal objeto de seu carinho. Ela (uma fêmea) foi adquirida pequenininha e muito delicada, para mais tarde se transformar numa mascote bem rechonchuda e forte. E queria apenas duas coisas: comida e carinho. Só que em tempo integral.

O casal não podia dormir junto, pois ela quase derrubava a porta do quarto tentando entrar. A solução encontrada por ambos foi separarem-se à noite, indo o marido dormir no sofá com a "filha", como ele a chamava. E, como trabalhavam o dia todo, durante o periodo de ausência dos donos ela se sentia só; ficava nervosa sem eles e defecava em todo o apartamento, quebrando coisas e fazendo tanto barulho que instalou seus moradores no topo da lista de ocorrências do condomínio.

Percebia-se o quanto o casal se sentia desesperado e cansado, mas também o quanto ambos amavam seu inconveniente bichinho de estimação. Era um verdadeiro dilema. E no final do programa, apesar das alternativas inteligentes oferecidas pelo adestrador para que o animalzinho se distraísse e desafogasse um pouco seus donos – como uma piscina de bolinhas com petiscos no fundo e um galão de plástico com furos e guloseimas dentro para que ela o girasse apartamento adentro -, a solução, entre lágrimas, foi declarada pela esposa: iriam devolver seu amado “pet” ao criador.

A justificativa: Pururuca, a porquinha, não se sentia feliz, nem o casal que a adotou. E, provavelmente, nem mais ninguém em todo o condomínio. Ficou claro o quão pouco sabemos sobre porcos como animais de estimação - mormente em apartamentos. Sabemos que os suínos foram domesticados pelo homem há muito tempo, ainda que tenha sido basicamente para alimentação. Também se sabe que são animais que rapidamente retornam à condição selvagem, caso sejam postos de volta na natureza. Extremamente sociáveis e inteligentes (dizem que até mais que os cães), consta que, contrariamente à voz corrente, são animais muito asseados.

Em meu quintal vive um cãozinho que amo demais, mas confesso que fiquei confusa e associei o caso de Pururuca a uma frase que li numa rede social, e que de certa forma fez muito sentido naquele momento: “Amo os animais, por isso não tenho nenhum”. Polêmica, mas de certa forma verdadeira. Ainda que cães e humanos sejam praticamente inseparáveis, e ainda que quem ama animais ama de fato todos – inclusive muitas vezes evitando se alimentar de carne – não tenho opinião formada sobre isso. A única coisa que tenho certeza é que ninguém merece sofrer. Nem os seres humanos, nem os animais.

Está aí um dilema a ser resolvido pelas próximas gerações: parar de criar animais para abate, mas também de aprisioná-los em apartamentos, castrá-los, enfeitá-los com coleiras e fazer deles nossa propriedade.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Inconveniência"

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