Maluco, eu...

Eu não sou maluco o quanto pensas, pode até ser que eu tenha tido um surto, mas que o barulho vinha de dentro do baú, isso vinha, eu não tenho dúvidas, eram um bocado de cartas velhas amontoadas há anos. Já ouviu falar dos grileiros? Pois é, dentro de um baú eles botavam documentos novos e os tornavam envelhecidos num instante só. Colocavam junto a esses papeis alguns grilos... É, grilo mesmo, de verdade. E sabe para que? Pois é, é que os pequeninos na sua santa inocência faziam xixi nos troços, tornando os papeis bem velhinhos. Aí os espertalhões tomavam posse do alheio... Essa prática valia para tudo, terra, carro, vestido de noiva, quadro de santo e outras quinquilharias, com suas devidas importâncias. Naquele baú, as pessoas que tiveram seus amores roubados, depositavam suas agruras, suas dores de amor e outras depressões. Como testemunha dessa passagem quem mais poderia ser, se não aquele velho e bom baú, hem?...

Você bem sabe que eu não sou maluco. Aquele barulho rompeu a madrugada, num fervilhar de risos e lamentos. Os risos deviam ser dos ganhadores, é claro, dos que apossaram do alheio, que tiveram naqueles amores vadios os bons pecados da vida. Delírios insanos que lhes afogavam de tanto desejo. As dores, essas foram e sempre serão repartidas com todos os românticos e sonhadores, que teimam em dizer maravilhas do amor, aí cantam e fazem poemas de dor. Fazem rimas com frases que no entender dos literatos não poderiam rimar, mas aos nobres poetas tudo pode, porque são eles os mestres em rimas de dor. Bom, falando do barulho, eu até que quis aproximar-me para tirar aquilo a limpo, pensei, pensei... Mas aí eu achei que seria muita intromissão de minha parte, sempre ouvi dizer que não devemos nos meter naquilo que não somos chamados. Ainda assim, eu fiquei meio que na espreita, sei lá. Como pode uma caixa velha causar tanta curiosidade, caixa não, baú, pois é, eu ali, achando tudo muito estranho.

Maluco eu sei que não sou. Eu estava cansado de esperar, estava só, tinha que ter alguém comigo para entender o acontecido, dividir comigo essa coisa estranha, um sentimento de impotência que quase me consome. Lembrei-me de tanta coisa, das cartas que vinham da guerra, das promessas de retorno que nunca aconteceram, e as respostas, afinal, para que respostas. Um dia um amigo meu disse-me que as cartas respostas a prisioneiros eram lidas pelos seus algozes. Será que eles entendiam as dores daqueles pobres? E o pobre que nunca amou, que nunca recebeu uma carta de amor, mesmo que tenha sido lida por um desses filhos da puta que acabei de falar. Todos nós devemos morrer de amor, porque amor é um caminho de dor, um caminho que leva ao fim. Pode até ser que as pessoas caminhem juntas para o fim, pior que isso é caminhar só.

Bom, de maluco já diziam que todos nós temos um pouco... Eu ali, olhando aquele baú; ele ali, inerte. Meus olhos já completamente embriagados de sono. Acabei dormindo. Quando acordei tentei decifrar aquela mensagem. Pouco compreendi. Acho que vou à procura de uma cigana minha amiga, quem sabe ela me conta o acontecido.

Mas maluco não. Isso não.