Essa sou eu

Tudo o que ele pode ver é uma mulher decidida indo embora sem olhar para trás, pelo menos é isso que eu penso enquanto caminho, na verdade essa sou eu fingindo ser forte, essa sou eu fingindo que não sinto mais nada e lutando bravamente para segurar as lágrimas até o momento de virar a esquina. Ele não vai me seguir, só preciso alcançar a esquina e acabou. Ele seguirá com a vida dele e eu me recuperarei do que fiz com a minha. Sei que ele está olhando, ou pelo menos acho que ele ainda está olhando, Deus como é difícil segurar o meu pescoço apontando minha cabeça para frente! Eu gostaria que ele estivesse olhando, talvez chorando por que estou indo embora. Não, ele não vai chorar, não até eu virar aquela esquina. Sei que assim que ele me vir desaparecendo no fim da rua vai perceber o que aconteceu. Ele sempre foi mais sensível do que os outros, ele vai chorar. Eu queria que chorasse. Me sentiria menos boba se soubesse que ele também está sofrendo, que ele também está se controlando. Não! Não vou chorar antes de virar a rua, se eu sentar no chão aqui ele vai achar que tenho algum problema com o que decidimos e vai vir me consolar. Eu não aguentaria começar tudo de novo, não outra vez, ou ele poderia nem se incomodar, ficar fazendo aquela pose de machão enquanto me vê desconsolada. Nossa! Eu não suportaria isso... Não mais uma vez...

Viro a esquina, eu queria sentar no meio-fio e botar para fora o que estou sentindo, mas, tenho que prender a respiração, não era para ter ninguém aqui, mas, eles estão aqui da mesma forma, apenas pessoas medíocres que eu não conheço, vivendo a vidinha medíocre deles na esquina onde eu pretendia sentar e chorar. Se eu chorar aqui eles vão querer mostrar o quanto são bonzinhos e tentar me ajudar, vão querer que eu explique o que houve, e não, eu não conseguiria contar esta história novamente. Como diabos eu iria explicar?

Dou meia volta para atravessar a rua e me encostar na outra esquina, que está vazia. Droga de pescoço que aponta meus olhos para onde bem entende! Eu olho para onde ele deveria estar, mas, ele não está mais lá. Solto a respiração e choro porque não consigo controlar. Ando mais rápido para que ninguém venha me perguntar se estou bem, se eu estivesse bem não estaria chorando na rua, estaria em casa, lendo um livro, talvez escrevendo um sobre como conseguir felicidade no amor, puxa vida, eu fui mesmo feliz um dia! Não, agora eu não estava nada bem, o livro terminaria com uma advertência sobre o preço da felicidade. Na verdade, nem sei se eu queria ficar bem outra vez, depois de tudo o que eu tive, depois de tudo o que abri mão e tudo o que perdi por simplesmente ter aceitado ele em minha vida, mesmo depois que soube de tudo. Não. Não ficarei bem outra vez.

Ah! Uma marquise fedendo a mijo de vagabundos! Perfeita! Não consigo imaginar um lugar melhor para sentar, sujar minhas roupas e terminar de destruir o que talvez tenha sobrado de minha maquiagem. Por que ele não me seguiu? Por que ele não disse nem mesmo um “EI” enquanto eu desaparecia... Será que ele me viu virar a esquina? Será que ele simplesmente se virou e foi embora sem olhar para trás? Será que eu sou assim tão desprezível que não mereço um pouco de luta? Pelo menos um pouco de insistência da parte dele para que eu ficasse? Claro que eu não iria ceder, isso é completamente impossível, não nunca mais, de jeito nenhum mesmo! Mas ele podia ter tentado! Eu queria que tentasse droga! Eu queria me sentir pelo menos um pouquinho importante para a vida de alguém, não apenas uma pessoa que diz que vai embora e vai sem deixar saudades! Talvez ele sinta saudades. Eu vou sentir.

O celular! Meu Deus! O celular está tocando na minha bolsa! Será que é ele? Se for eu não vou atender! Eu falei pra ele não me telefonar nunca mais, falei que não vou atender! Droga! Cade o meu celular? Por que levo tanta coisa inútil nessa bolsa? Por que só encontro o celular quando ele para de tocar? Número confidencial! Me resta continuar chorando e catando as coisas da bolsa que derrubei no chão. Não devia ser ele... Com certeza apenas algum vendedor querendo me empurrar mais alguma prestação mensal... Droga! Droga! Agora vou ficar pensando que podia ser ele e eu não atendi! Mas eu é claro que eu não atenderia se fosse ele, então por que isso me incomoda tanto? Por quê? Por que essa porcaria não toca outra vez? Nem os vendedores de telemarketing não insistem mais em mim! Eu queria tanto que ele ligasse...

---- Tudo bem com você moça?

Um bêbado nojento querendo mostrar que é solidário resolveu falar comigo. Devo estar sentada no banheiro dele.

---- Não! Está tudo bem... - eu respondo - Eu já estou indo embora.

Eu levanto e tenho outra crise de choro. O bêbado me abraça. Esta sou eu sendo carente demais. Quanto mais eu luto pra segurar o choro, mais minha garganta dói e insiste em soluçar.

---- Sente um pouco moça...

Ele tenta me fazer sentar naquele lugar horrível outra vez, eu luto, largo de seu abraço e sigo caminhando! Essa sou eu indo embora outra vez sem olhar para trás. Ele não devia me seguir, não ele, mas, ele me segue.

---- Moça! Você precisa de alguma coisa? Quer ir para algum lugar?

---- Não preciso de nada!

---- As vezes, o que cura isso ai, é uma bebida bem forte.

---- Eu não bebo!

---- Se quiser eu posso te pagar alguma coisa... Vai te fazer bem.

---- Escuta aqui! Eu estou bem! Não quero beber nada! E não quero você me seguindo!

---- Tá bom moça... Se mudar de ideia, atravessa a rua, segue ali pra baixo, e a porta com o toldo azul. Estará entre amigos lá.

Este é o bêbado desistindo de mim. Eu precisava mesmo de umas doses, mas, não assim... Ele atravessa a rua e olha para trás, ele vê que eu estou olhando.

---- No toldo azul! - Ele grita do outro lado da rua!

Passos firmes. Ele vai embora... Se eu não fizer nada ele vai embora mesmo... Eu não vou no tal do toldo azul! Nem morta! Não assim toda acabada depois de chorar.

Espera! Eu grito dentro de mim, mas, por fora é só um sussurro... Ele não escuta, vira a esquina, tenho certeza que já me esqueceu. Coloco a mão no bolso para olhar o celular e gritar mentalmente para aquele desgraçado ligar pra mim, mas, não acho o celular. Essa sou eu em panico achando que o bêbado roubou meu celular. As pessoas medíocres encostadas na esquina que eu queria ter chorado só podem ver uma mulher correndo desesperada. Atravessa a rua, dobra a esquina, o primeiro toldo azul. Eu entro. O bêbado está lá, sozinho em uma mesa vazia. Olha para mim e sorri.

---- Você roubou meu celular! - Eu acuso.

---- O que? - ele parece não saber de nada – Você perdeu o celular?

---- Estava comigo quando você chegou.

---- Não deixou cair? Não guardou na bolsa?

---- É claro que não guardei na bo(...) - Droga! O celular estava tocando dentro da bolsa.

Abro a bolsa, procuro o celular e acho, procuro um lugar para enfiar a cabeça e morrer de vergonha ou então asfixiada, o que acontecer primeiro. Pego o aparelho. É ele! Eu falei para não ligar e ele ligou mesmo assim! Não vou atender. Diabos! Por que ele tinha que ligar?

---- Moça? Não vai atender? Sente ai, tome uma comigo.

Esta sou eu vencida pelo cansaço. Eu sento, pergunto pro gordo suado do balcão o que tem para beber naquele muquifo. Estava pensando no que aconteceria se eu atendesse, não escutei a resposta do gordo e pedi uma vodka.

---- E então? - o bêbado pergunta – Agora que achou o celular, quer falar sobre alguma coisa? Sobre por que você está chorando?

---- Não. Desculpe, eu não deveria ter vindo.

O gordo coloca o copo no balcão, eu levanto, pego, viro o copo goela abaixo, peço outro e volto a sentar com o desconhecido. Essa sou eu sendo inconsequente, tudo o que eu quero é contar para alguém o que aconteceu comigo, mas, não será sóbria que terei coragem de colocar o dedo nessa ferida... Preciso de álcool.

---- Pensei que não bebesse.

---- Eu não bebo. Mas nem por isso minha vida é perfeita!

---- Vida perfeita não existe moça. Existe só a vida, as escolhas que fazemos com as opções que a vida deu pra gente e as opções que sobram, depois de cada escolha.

---- É. - Respondi querendo dizer o quanto odeio filosofia de boteco e ao mesmo tempo tanta coisa sobre minha vida, as escolhas que fiz, os erros que cometi... Mas... Não disse nada disso.

O gordo trouxe mais uma dose na mesa, virei-a imediatamente.

---- Melhor deixar a garrafa! - Falou o bêbado e, o gordo trouxe mesmo a garrafa, dizendo que era por conta da casa.

Vodka vagabunda, seria um milagre se acordasse viva amanhã. Na verdade, nem queria ter um amanhã para lembrar disso tudo outra vez. Para medir as opções que me sobraram depois das escolhas que eu fiz.

---- É um cara? - O bêbado pergunta.

---- Como assim?

---- É por causa de um cara que você está assim?

---- Não é da tua conta! - Bebi mais meio copo – Mas sim... É um cara.

---- E o que ele te fez?

---- Nada! Ele nasceu! Só isso! De bilhões de outros caras, justo ele tinha que ser o cara!

Não lembro de ter almoçado. Nem lembro da ultima vez que comecei a ver duplicado. Essa sou eu bêbada. Esse é meu mundo girando sem sair do lugar. Mais da metade da garrafa já havia desaparecido para dentro de mim, eu nem me importava mais. Quando comecei a contar minha história o gordo foi até a rua, olhou para todos os lados e fechou a porta de metal com a gente dentro. Esta sou eu apavorada, sozinha em um bar com dois desconhecidos imaginando sequestros, estupros e assassinatos. Não. Nada aconteceu. Falei tudo o que precisa dizer, vomitei no chão, na minha roupa, lembro de ter dado em cima do bêbado e do gordo, mas, eles só queriam que eu contasse a história. Acordei em casa, intacta, nem mesmo lembro como foi que cheguei aqui. Não acredito que consegui contar para os dois que me apaixonei por um homem e um ano depois engravidei. Poxa! Bastou um exame de sangue no pré-natal para descobrir que o pai de meu filho era também meu irmão por parte de pai. Nós nunca conhecemos nosso pai. Queria ter sido assassinada naquele bar pra não ter que lembrar como fomos frios na hora de decidir abortar o bebê, ou então ontem a noite, quando decidimos que era melhor nunca mais nos vermos. Ele me ligou a noite inteira, nem acredito que consegui não atender. Essa sou eu, fingindo que não sou eu, pra desagradar quem eu amo. Por que é o certo a se fazer.

=NuNuNO==

(Que sabe que existe uma solução para cada problema, mas, nem sempre a escolha é agradável.)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 03/09/2013
Código do texto: T4465726
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