Quem se importa?

Nas noites mais frias é que percebo que um edredom velho e um travesseiro que nem de pena de urubu é,cabem perfeitamente na minha cama e me aquecem. O problema é que junto à minha cama semi quente,surge uns pensamentos gélidos e sombrios.

Mais cedo,quando eu saía do trabalho e o sol tímido dava um de seus últimos acenos e uma brisa fresca beijava meu rosto avisando que a noite seria fria,eu vi uma menina,aparentava não mais que quinze anos,sentada no canto escuro da calçada,olhar vazio e estático,mãos estendidas mecanicamente,e uma única certeza: a noite seria longa.

Assim como eu,todos passavam sem prestar atenção,apenas víamos-na como a um banco vazio de praça:às vezes serve para sentar. Ninguém a enxergava,nem mesmo eu. Ao passar por ela,nossos olhos se encontraram e se perderam,no mesmo instante. Eu não sei se a vi,ou se me vi em seus olhos vazios. Tive medo. Fugi. Andei mais depressa que pude,e agora sei que muito mais por covardia do que dor.

Deitada em minha cama tentando rapidamente me aquecer,o rosto daquela menina surge feito animação em 3D em minha frente e a medida que o frio ameniza,as sombrias lembranças gelam o dorso espinhal da minha alma. Demorei bastante, e acho que por cansaço da insônia,adormeci pesada e vazia, feito a menina adormeceria na rua,mais vazia que pesada,imagino. Acordei às 7h, e demorei para perceber que a essa hora já deveria estar no ônibus, a caminho do exercício diário da classe trabalhadora.Levantei às pressas e nem café tomei, vesti qualquer roupa quente,catei minha mochila e corri,literalmente, na tentativa insana de pegar a condução das 7h30,que passava a duas quadras da minha casa. Calculei que como sempre atrasava uns dois minutos,daria tempo de pegar. Não sei se minhas pernas estavam mais fortes ou se o relógio atrasara,só sei que cheguei no ponto pontualmente e sem trocadilhos às 7h31,e por força do acaso o ônibus também chegou. Mais ofegante do que agradecida subi e deslizei meus dedos pelo zíper da mochila em busca da minha carteira. Tive um choque. Depois uma lembrança. Por fim um silêncio estarrecedor. A carteira ficara na bolsa nova que eu comprara e usara no dia anterior. E agora? pensei. Pessoas que entraram depois de mim pediam licença sem palavras,e olhares me acertavam de vários ângulos e modos. Me arrastei para o canto e continuei a procura,na tentativa frustrante de encontrar alguma nota perdida,qualquer que fosse,mas não havia nem moedas.

Já me preparava para descer quando senti uma mão ossuda tocar minha cintura. Antes mesmo de pensar no que seria,virei-me, meus olhos marrom avermelhado por conta do quase choro de nervoso viram um branco do sorriso,mechas castanhas empoeiradas e brilhantes moedinhas douradas e prateadas,pairarem num travesseiro feito de gente,mãos de anjo,estendidas para mim.Seria um anjo,ou apenas um menino? Silêncio! Nenhuma palavra, apenas olhos arregalados,dentes mais à mostra que de costume e uma gratidão envergonhada pairavam no ar gelado daquela manhã. Ensaiei dizer "não precisa" ou "porquê esta fazendo isso",mas as únicas palavras que saíram de minha boca foram: obrigada.

O garotinho,moço demais para estar na rua sozinho às 7h30 da manhã,levava consigo três coisas muito importantes que não me esquecerei jamais. Eram elas:

Uma sacola de paçocas;

Uma aparência embaraçosa;

O sorriso sincero mais lindo que vi.

Enquanto atravessava a roleta,o ônibus parou,o menino saltou e pela janela pude vê-lo se juntar com seus amigos,compondo um cenário habitual e triste da cidade. Diferente dos outros dias,vi todas aquelas pessoas com um olhar peculiar. Não consegui dizer mais nada? pensei. Não,não disse! Apenas um agradecimento simples,mediante um gesto sem precedentes visto por mim.

Nem é preciso dizer que nesse dia trabalhei abobalhada,sorri e chorei ao mesmo tempo,e como uma música chiclete que gruda e te surpreende a cantá-la frequentemente,os rostos da menina e do menino me acompanharam deliberadamente por longos dias.

Não sei se me senti feliz por não ser a menina na calçada,ou por ter sido "salva" por um menino franzino. A verdade que me corrói a alma é que eu,diferente deles,me escondo atrás de uma aparência agradável e sou incapaz de transformar meu caminho. Julgo ser melhor por morar numa boa casa e ganhar meu próprio salário quando na verdade sou só um resultado. Nasci de um mesmo útero quente,alimentei-me de um também seio farto,aninharam-me em braços longos e fortes(pelo menos para um bebê)e o resto,o resto é estrada e sol quente,algumas nuvens de chuva e ventos menos ou mais brandos. Mas isso não muda nada. Fechar meus olhos é ignorar a minha própria existência e dizer: Dane-se! Não me importaria de estar ali,e isso eu não posso dizer! Eu me importo sim!

Gabi Vilamar
Enviado por Gabi Vilamar em 06/09/2013
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