REMINISCÊNCIAS

Por vezes a gente nem quer, conscientemente. Mas elas vão, subrepticiamente, chegando, como quem não quer nada e acabam por tomar, inteiramente, os nossos sentidos.

É uma volta mansa ao passado, sem preconceitos, sem comparações desnecessárias e, até, por vezes, injustas.

Tudo veladamente encoberto por uma rósea aura de bonomia, de alegria primaveril, de coloridas guirlandas de inocência, de uma saudável saudade, sem mágoas, sem desejo de retorno, pela certeza de ter vivido plenamente a infância, a juventude e a adolescência.

As cenas vão surgindo, sem nenhuma ordenação, sem preocupações cronológicas; simplesmente se sucedem, saltam de uma para outra, fixam-se em algumas, fazem rir, trazem lágrimas aos nossos olhos, mas, em suma, são extraordinariamente gratificantes.

Vem o estilingue, a bola de gude, a peteca, a amarelinha, o mergulho nu na pesca de siri, a invasão do pomar alheio, a dor de barriga pela fruta verde, a pipa solta no ar, o beijinho roubado na sacristia da igreja Coração de Jesus, na rua Benjamim Constant e o afano do vinho do padre no mesmo local, a pelada nas íngremes ladeiras de Santa Teresa...

De cambulhada, salta-se para a adolescência, para a primeira namorada, para a incrível descoberta de um corpo de mulher, para o primeiro e horrível porre, para o cigarro corajosamente fumado na sapataria do Mario, alcoólico convicto, que só Deus salvou de um mortal auto- ferimento de sovela.

Em minha última regressão, surgiu a figura de um amigo, também adolescente, cujo nome me escapa agora, mas o apelido jamais esquecerei. Aliás, eram dois; "Comida de peixe" e "Filé de Borboleta".

Creio não haver necessidade do " por que?".

Parecia um ramo de trigo balançando ao vento; alto, fino, pálido e encurvado, mas era um danado pra inventar estórias!

Por exemplo; ele assistia 3 ou 4 vezes o mesmo filme ( legendados) e decorava o tempo as falas e as cenas.

Quando estava tudo certo, lá ia ele para mais uma sessão e quando o temível pistoleiro ia indo pela estrada ele gritava "olha pra trás, covarde" e o cara olhava mesmo, sob a gargalhada geral da plateia. Outra era o personagem do "western", vaqueiro bravo, que namorava a mocinha e o meu amigo gritava com voz de falsete, "vai tomar banho, seu imundo" e, na tela o "cow boy" confirmava; " É, minha querida, acho que estou precisando de um bom banho".

De outra feita, o filme era de terror - Drácula- e a cena mostrava o dito cujo levantando-se da tumba e, em "close", seus enormes caninos, em seguida um corvo passa voando. A plateia, em suspenso - olhos arregalados, respiração acelerada e, então, neste exato momento o "Filé", lá de cima do balcão, atira ao ar uma galinha viva, bem no foco de luz do projetor. A silhueta da ave, enorme, ocupa toda a tela e causa o maior burburinho lá em baixo. Além do susto, ainda foi demorado apanhar a penosa, para a sessão continuar.

Mas, como tudo tem um fim (até o Império Romano ruiu!), a gerência do Cine S.Luis, no Largo do Machado, tomou providências,

Era um filme estrelado pelo Sinatra, no início de sua carreira, e, numa cena, ele abria a cortina do teatro e entrava. Aí o Filé de Borboleta , antes que isso acontecesse, gritava "Entra logo, Sinatra."

Logo, por trás dele, a voz grave do segurança se fez ouvir "Sinatra está saindo" e o levou para fora do cinema.

Sorte que ele, estudante, só tinha pago meia entrada!

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(não deixe de ler o colega Roberto Fraga - Cronista)

paulo rego
Enviado por paulo rego em 07/09/2013
Reeditado em 16/12/2013
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