Trupe dos Machucados

Trupe dos Machucados






Odair vinha andando pela rua, eu idem, nos esbarramos, ele levava o braço esquerdo numa tipóia. Me contou que acordou assim, foi ao médico que lhe receitou parcial imobilidade e anti-inflamatório. Odair se ressente não só pela dor. Seu trabalho consiste em abrir portas e apertar botões.

Sandra eu não vi mais, mas sempre a ouvi com profundo respeito e pesar. Ela falava de machucados antigos. Quando tinha 15 anos o pai matou a mãe, sem querer. Haviam saído de uma festa num sábado à noite, ele bebera além da conta e um poste decretou a ruptura do núcleo familiar. Quando estava com 17 um amigo da família achou por bem estuprá-la. Trinta anos passados ela ainda carrega essas imagens.
Silêncio e compaixão auxiliam no processo de cicatrização.

Se você der uma lida no Lancellin, vai descobrir um manual de reforma interna do escambal. É um livrinho, fisicamente dizendo, salpicado por palavras difíceis, traduzindo, o Plano do Espírito não nivela por baixo. Traduzindo again: abre o dicionário e ilustre-se. Por quê? Porque o saber cura, mas, antes de mais nada compreenda, não se trata do saber de nomes e datas.

Que baita momento maluco se apresenta bem na frente de nossos olhares, especialmente no orbe verde amarelo, pois, fato inegável, os outros lá no norte do planeta se matam, mas como aqui, tenha dó... Dá um look nesses números: se juntar o povo francês, britânico, alemão, japonês, suíço, sueco, dinamarquês e australiano chega-se ao número igual da população dos USA. Dados recentes, não são do ano passado, mas são recentes, revelam que a América teve 32.000 fatalidades causadas por armas de fogo, ao passo que os povos juntados e citados acima tiveram 112 (Cento e doze).

Você sabe qual nossa cifra?

Ontem, na Santo Amaro com a Verbo Divino, uma senhorinha, carregando uma bandeira de lançamento imobiliário, virou pra mim e disse: o cara me paga 35 R$ pra ficar aqui das 8 as 18, de pé, e tá me devendo.

Um novo ângulo da questão é que não se trata apenas de feridas antigas visto que o patamar da idiotia abre novas chagas todos os dias.

Outro dia, mais um bando de mascarados encheu o saco até a tampa, a TV diz que foram 5 horas de aporrinhação, foi não, tinha helicóptero na porta de casa até meia noite.

Por que é que não há um único mané engravatado para empunhar um microfone e dizer: ô, coleguinha, papo é o seguinte – pára de reclamar. Você não está no meio do deserto num calor de 50 graus, você tá no paraíso. Que idade você tem, 20 aninhos? Que gracinha... Então, feriadão, cara, temos 8 mil quilômetros de praias, vai usufruir esses seus 20 anos com uma mochila nas costas, põe um velho calção de banho e dá um mergulho. Você não faz idéia do tamanho do sofrimento que inflige aos idosos, aos que estão chegando lá, às mães com crianças, aos que estão a fim de trabalhar no feriado, ou curtir o feriado, ou chegar em casa, ou etc., etc., só porque você e seus amiguinhos enfiaram na cabeça que tumultuar vai trazer a luz no fim do túnel, ou a mudança, e que ela vai acontecer num piscar de olhos. Entonces, pega toda essa energia pós adolescência e vai dar um mergulho em Jeriquaquara. Daí, de cabeça fria, agradeça a democracia que nós ainda temos e pensa na hora de votar. Entendeu? Pesquisa, pensa, vê os nominhos que estão na cédula, escolhe outros, pega o telefone do candidato pra você cobrar depois, é assim que funciona.

Olha, a internet dá a maior força para isso, os dígitos abaixo praticamente caíram no meu colo, eram mesmo para constar dessa crônica:


Eunício Oliveira (Líder da Maioria)
(61) 3303-1400

Inácio Arruda (Líder do PCdoB)
(61) 3303-5791 ou (61) 3303-5793

Wellington Dias (Líder do Governo)
(61) 3303-3191

Mário Couto (Líder da Minoria)
(61) 3303-5757

Francisco Dornelles (Líder do PP)
(61) 3303-9029

Gim (Líder do Bloco União e Força)
(61) 3303-9430

Você pode principiar a sua queixa, (lembre-se de ser educado), dizendo assim: V.Exa. está me representando...

Ah, você age assim (quebrando tudo) porque está machucado? Bem vindo ao clube.

Te contei do Fernando? Ele narra que, aos 16 anos, seu pai chegou em casa numa noite, acendeu um cigarro de palha, mandou ele dormir e, ao acordar, viu o pai dependurado na sala. O homem havia se enforcado. Quase 3 décadas passadas, Fernando continua se perguntando se tudo o que ele foi na vida não se resumiu a um reflexo desse trágico acontecimento.

Um grande amigo passou uma temporada nos States, algo em torno de 3 meses e me participou a seguinte descoberta, e olha que ele conhece outros lugares do mundo: São Paulo é abundante. Aqui, em qualquer esquina você a mata a fome num quilinho, arroz, feijão, legumes, peixe, carne ou frango, lá o papo é outro.

Sim, por outro lado eles têm ônibus silenciosos e confortáveis...

Ai, ai, dureza...Mas, tornando ao assunto, um tanto difuso aqui, enfim, quem sabe você conhece essa: sou livre para escolher, mas sou prisioneiro das conseqüências. Pérola cunhada por notável escritor.

É que o lance do saber vai se infiltrando devagarzinho, como água na calçada, que entra em todas as saliências, e no fim descobre-se ser indiferente piscar ou acenar para um cego.

Toda essa testosterona encapuzada causando aflição, já te disse e, a menos que você esteja nessa fita à soldo, no intento de esculhambar o barraco, ora essa, vote conscientemente e cobre do votado, pois o caos é inimigo de negócios abertos, empregos plenos, inimigo da cultura, da arte, do esporte, da pesquisa...

Ah, você protesta porque o Obama espionou...

De novo serás salvo pelo Universo da Subcultura. A princípio vem o choque, seguido da indignação e depois, ah, depois o relaxamento. Cara, acorda! O Big Brother faz isso desde os anos 50. Desconheço o real motivo de todo esse bafafá agora, fala sério, só pode ser show de mídia... Em meados dos 50, USA, Canadá, Grã Bretanha, Austrália, e creio eu mais dois ou três que não se identificam criaram a Echelon: sistema de monitoramento mundial de informações. E isso foi, como dizer, se aprimorando, o que antes mantinha o foco em ondas de rádio e TV chegou obviamente à web.

Você acha que esses caras, os USA, se mantém à custa de dinheiro e só isso? Não, veja bem, esse é um raciocínio muito burro. Nos meus tempos de facu tinha um ou outro mané que apitava: eles só mandaram o homem para a Lua porque tinham dinheiro... Ah, faça o favor, se não existir um conceito para manter a coisa toda amarrada, e não com fita durex, mas amarrada mesmo, ela não vinga. Estou querendo muito acreditar que o Snowden é um dissidente genuíno (e não uma distração midiática com propósitos ainda obscuros), porque, veja bem, na minha parca opinião os USA são movidos por conceitos.

Vou te dar um pequeno exemplo: sabe como funciona a manutenção do Força Aérea 1, avião que leva o chefe da nação aos cantos do globo? Para começo de conversa, a cada 154 dias o avião é totalmente desmontado, peça por peça, e daí montado de novo. Para você fazer parte da equipe que empunha uma simples chave de fenda para apertar um único parafuso você fica 12 anos em período probatório, examinado por uma junta, e mais dois anos em exames disso e daquilo.

Sim, colega, eles não são infalíveis, todavia há um traço de vigarice sobre o rapaz caucasiano que de repente acordou, fugiu pra Rússia, não sem antes ter “revelado” ao mundo que seu patrão é um espião. Ufa, é óbvio que eles espionam e nesse instante agito minhas penas no galinheiro e brado: bom, se não aumentarem o preço do pãozinho, por mim tudo bem. Ou antes, o que é que eu vou fazer? Eu preferiria mil vezes que houvesse merendas, professores e segurança nas escolas públicas. Isso sim me traria paz em relação ao Todo.

No mais, está todo mundo machucado, em diferentes níveis, mas o espírito turvo ainda é uma erva daninha expressando um grau de surrealismo difícil de lidar. Faz vítimas em todas as frentes e seria cabível dizer que cada uma delas vive numa repulsiva, perigosa, desesperada e opressiva ignorância.

Corações bem intencionados, na flor da idade, teriam conseguido, não fosse esse detalhe.

Encerramos com uma frase oriunda de outras eras e plagas, originalmente formulada em latim: “A corrupção dos melhores é a pior de todas”.


(Imagem: Emilia Dziubak)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 11/09/2013
Reeditado em 12/05/2021
Código do texto: T4476951
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