O DESASTRE DA PRIMEIRA VEZ

Fiquei confuso e não sabia o que fazer.

Fiz do jeito que entendi, e acabou dando em merda.

Em meados dos anos cinqüenta, as emissoras de rádio eram já mais modernas que as de trinta. O estúdio era composto por uma cabine de locução, que ficava hermeticamente fechado, onde o locutor fazia seus comentários e anúncios musicais. A mesa de som ficava logo a frente da janela de vidro para facilitar o controle, e leitura dos sinais que o locutor fazia para o técnico de som. O técnico de som era o indivíduo multifunção que tinha que estar com um olho no locutor, e outro nos pratos do toca disco, com as mãos prontas para acionar o vinil, - que poderia ser de sete, deis e doze polegadas - e jingles comerciais, e também com o ouvido atento aos telefonemas dos ouvintes pedindo músicas.

A mesa de som era uma parafernália dos diabos com dois pratos para tocar os discos de vinil, jingles, e botões para fechar ou abrir o som da cabine do locutor, e outros dispositivos para alterar a rotação dos discos para trinta, quarenta ou setenta e oito rotações. Era uma academia de contorcionismo.

Atrás da mesa de som, uma infinidade de discos de vinil, na vertical, separados por estilos de músicas, que obrigatoriamente tinha que ser memorizado pelo técnico de som. Os jingles ficavam empilhados a sua frente para facilitar o manuseio.

Comparado aos dias de hoje era como se você entrasse, pela primeira vez, numa cabine de um jato, e tentasse decolá-lo.

Ainda virgem, saído do seminário, tive que garimpar um emprego para receber proventos para meu sustento primário. A estação de rádio pertencia a um dos sócios de meu pai, e por conta disso, todo o processo de recrutamento, e seleção foi simplificado com a frase: Você está empregado, e vai apenas passar por um treinamento para assumir a mesa de som.

Fiquei feliz, e imediatamente comecei o projeto de meus sonhos futuros. Não pretendia ser um Roquete Pinto, mas almejava sair na capa da revista do rádio. Sonhava em ser famoso.

Hoje, quando entro em uma missão difícil e complicada, sempre me coloco superior e enfrento com galhardia o desafio proposto. Não tenho medo. Eu gosto, e me saio bem.

Mas, naquele dia, quando entrei naquele estúdio, e vi admirado como o cara, feito um doido, resolvia magistralmente tudo, me perguntei imediatamente apavorado:

- É no lugar dele que vou ficar? Tô fudido!

Arrepiaram todos os pelos de meu saco, e um frio desconfortavelmente subiu do meu fundilho indo safado morar na minha nuca.

- por Deus que não conseguirei! foi minha conclusão que direcionei desastrosamente para meu cérebro.

Quando a gente pensa negativamente o universo inteiro conspira contra nós, e então a coisa não dá certo mesmo, e a gente se fode de verde e amarelo. E eu me fodi.

Dois dias foi o tempo de meu treinamento. O maldito técnico de som, que era meu instrutor, trabalhava alucinado dando as mil e uma explicações do que estava fazendo, e dos cuidados que eu tinha que ter com isso e com aquilo, mas sem me colocar na atividade prática. Um procedimento complicado do caralho! Na teoria eu consegui captar perfeitamente a coisa, mas a maldita prática, sem a prática, foi me deixando cada vez mais apavorado.

E foi assim que o filho de uma puta de meu instrutor, o dono absoluto do posto, no terceiro dia, talvez por um desarranjo intestinal, me colocou em sinuca enviando um bilhete qualquer, endereçado ao gerente da estação do radio, com a seguinte lacônica instrução.

- Não poderei ir hoje, mas o processo de continuidade não será quebrado porque o Mário já sabe tudo!

O filho de uma puta trabalhava há mais de dois anos nesta função, e o corno pensou que em dois dias eu fosse mágico capaz para absorver os dois anos de prática dele.

Tremendo feito vara verde num vendaval, sentei na cadeira onde nunca havia sentado antes, e que jamais deveria ter sentado naquela situação. Olhei confuso,e tentei começar a tarefa, que para mim naquele momento era radical.

Mas, antes tive que levantar de imediato por complicações de afrouxamento do tubo digestivo.

Atrasei a abertura do programa por mais de dez minutos porque tive que trocar de cueca por duas vezes. O locutor colocou um fundo musical, e ficou me aguardando. Finalmente cheguei, sentei-me naquela cadeira, olhei agora de frente tudo aquilo, e fiz uma oração:

- Que Deus me proteja e que o diabo esteja longe.

Eu acho que Deus, zangado ainda, por eu ter abandonado o seminário recolheu todos os seus anjos do recinto. Não quis me ouvir, e por esta razão deixou o capeta tomar conta da situação. O capeta ficou feliz, e fez de tudo para ver o circo pegar fogo.

Respirei fundo, fiquei confuso sem saber o que fazer.

Consegui, com muito custo, meter o dedo num botão qualquer e colocar o som na cabine. O locutor iniciou então sua locução dando o sinal que pediria uma música. Busquei o vinil; por sorte minha, era música tocada a todo instante com Nelson Gonçalves. Com alivio, sabia onde se encontrava o maldito.

Posicionei o vinil no prato com a agulha no ponto para iniciar a música.

O locutor anunciou finalmente a canção que seria uma dedicação de uma fulana apaixonada para o seu homem.

Ele deu o sinal, e eu fazendo o sinal da cruz, fechando os olhos, liguei o toca disco.

Início do desastre!

Esqueci de mudar a rotação de quarenta e quatro para setenta e oito. Nelson cantou rápido e fininho tal qual um castrado. Percebi o erro, e incontinente troquei a rotação. O erro permaneceu, não me ocorreu trocar a agulha. Afobado meti a mão no vinil, riscando e detonando o disco. No desastre meus dedos acabaram tocando o botão do liga e desliga, fazendo o som retornar para a cabine. O locutor, de olhos arregalados, não percebeu que agora ele estava ao vivo, e vendo enlouquecido tudo o que acontecia gritou, para mim e para os ouvintes:

- Puta que pariu! Caralho! Que merda está acontecendo aqui?

Na praça principal da cidade tinha um alto-falante que transmitia toda a programação da rádio.

E, ouviu-se em uníssono, naquele momento, por toda a cidade um Ohhhhhh! que se prolongou em sinal de protesto perdendo-se no universo.

Finalmente tive um momento de lucidez e sem querer acabei retirando a estação de rádio fora do ar.

Imagine um cara exigente, meticuloso, que quer tudo em ordem e tudo nos conformes!

Conseguiu agregar? Pois este era o gerente da estação de rádio.

Imagine agora um cara fudido, transtornado, virado num dragão caolho, sem uma perna, com os grãos do saco espremidos, e soltando fogo pelas ventas!

Imaginou? Pois este era o gerente da estação, travestido, que vi entrando no estúdio naquele momento. Ele fazia merchandising da rádio na cidade, e quando ouviu a catástrofe situação retornou incontinente, feito um louco, entrando alucinado no estúdio; Estupidamente desrespeitou-me como o filho do patrão, colocando-me sem cerimônias para fora da mesa de som para assumir minhas funções.

Saí de fininho, e nunca mais voltei, nem mesmo para receber parte de meu salário.

Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 17/09/2013
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