Fração de Segundos

Em uma fração de segundos tudo pode acontecer. A chuva cai, bueiros entopem, pessoas escarram no chão. Cães ladram, mulheres traem seus maridos, sombras de arvores atravessam as ruas, ainda assim aquela senhora de cabelos ruivos não acreditava que essa mesma fração de segundos pudesse mudar alguma coisa em sua vida. Soprava a fumaça do cigarro com lentidão e observava o ultimo fio acinzentado se desfazer no ar, passou mais uma vez as mãos acariciando os seios fartos e ampliou o decote da blusa, puxou a minissaia jeans deixando as coxas brancas quase despidas. Deu dois passos a frente para se livrar das palavras pejorativas sussurradas por um grupo de Protestantes que aguardavam o ônibus. A bota meia pata da marca Vizzano chamara atenção de um travesti também ignorado por ela, que fazendo gestos com as mãos atravessou a rua e sumiu.

Ela se lembrou do ano de 1964 quando chegaram ao Rio de Janeiro para se instalar no bairro de Catumbi. O pai Escrivão da Policia fora enviado para ser o olheiro do DOPS. Pois com a inauguração do Túnel Santa Bárbara em 1963 e a posterior construção do elevado 31 de Março, o bairro do Catumbi fora dividido em dois, um deles somente por apoiadores do regime militar. O outro como os ditadores diziam, era mesclado de Comunistas e subversivos baderneiros. Ela andou até a porta de um bar onde duas grandes sinucas estavam repletas de jogadores, pensou em adentrar, mas os olhares sedentos de alguns dos fregueses que bebiam em mesas distantes fizeram-na desistir e voltar à mesma esquina.

Em uma fração de segundos um tiro havia matado o Presidente dos Estados Unidos, também em uma fração de segundos sua melhor amiga despencara do vigésimo quinto andar de um prédio na Avenida Paulista. Mas imprevistos acontecem sempre, pensou a retirando mais uma vez o pequeno espelho da bolsa para retocar o batom, a boca carnuda e vermelha paralisou-se para que os olhos fizessem uma viagem a muitos lugares, muitas épocas remotas, nomes passaram devagar pela mente, outros passaram fugazes como se não tivessem permissão para estarem ali, viu sangue jorrar daquela boca roçando o solo asqueroso abaixo de um pé, não de um simples pé, mas um pé de alguém temido e odiado, um monstro com pés que eram patas, que infelizmente era o seu pai. Afagou novamente os seios volumosos aumentando pouco mais os decotes, agora um sutien de rendas brancas fazia uma luxuriosa combinação claro-escuro sem o menor pudor.

Lembrou-se da ultima vez que vira o neto, lindo com a Toga de formando, apertando-a agradecido, contra seus braços sem dizer nada, a filha sisuda com cabelos escovados e ruivos a força, sentava na primeira fila e se portava como figura de concreto. O genro, aquele merecia uma recordação especial, a boca até se precipitara em sorriso involuntário. Um chuveiro de água morna, uma canção que não sabia o nome, mas que marcara pela suavidade da melodia, trovões urrando do lado de fora e um vento forte batendo as folhas das palmeiras contra o tronco, o mundo era só lá dentro... Em uma fração de segundos a ideia brota da cabeça de um dramaturgo e um grande filme pode surgir. Pensou em um que gostava muito “O Céu de Suely”, sua boca faceira de lábios carnudos fora novamente impulsionada pelo cérebro para abrir um novo sorriso. Até acendera outro cigarro, revendo o seu próprio filme real, baseado naquela Protagonista. Em uma fração de segundos, bombas atômicas mataram milhares de japoneses, o ex-presidente do Iraque pagara por seus crimes em uma forca. Em uma fração de segundos a vida pode não mudar, a chuva não cair, as plantas não crescerem, as flores serem pisoteadas no jardim. Apenas uma fração de segundos não mudaria sua vida.