Sem Vagas

A notícia agradou muitíssimo o presidente da república. O homem ficou radiante, quando terminou de ler o relatório recém entregue por seu secretário em seu gabinete. A notícia não poderia ser melhor! Abriu a gaveta daquela escrivaninha colonial, onde tantos outros líderes em diferentes momentos também ocuparam-na, todavia sem muito êxito. Apanhou um Montecristo no. 2 do lado de Quai d’Orsay “Corona” muito perfumado. Passou o belo charuto sob o nariz e deu aquela inspirada. Um dos melhores. Depois verificou a ponta apropriada e deu uma mordida. Isto mesmo! Uma mordida e então cuspiu fora o pedaço decapitado. Mastigá-lo, não, que ele não era do tipo norte americano. Aliás, odiava imitá-los. Nacionalista ferrenho. Apanhou um isqueiro e acendeu o charuto. Não diretamente! O fogo foi lento e a posição do charuto oblíqua. Depois de algumas pequenas baforadas languidamente sugou aquela relaxante e vitoriosa fumaça tão reanimante. Lembrou-se de uma frase de Davidoff: “Um fumante de charuto é um homem em estado de felicidade.” De fato estava feliz. Uma grande conquista, diante do pessimismo da oposição e de tantos fracassos de acordos dos seus líderes, tanto na câmara como no senado.

Novamente vossa excelência releu a principal página do relatório. Que notícia! Já imaginava nas manchetes dos principais jornais do país: “Montadoras de veículos rindo à-toa: a venda de veículos no país subiu 80% em relação ao ano anterior”; “Em cada 10 habitantes, 10 possuem carro!”; “A maravilha da riqueza aconteceu: todo brasileiro tem o seu carro!”; “O maior sonho de consumo da população agora é realidade!”; “Montadoras são os maiores empregadores de todos os tempos: nenhum desempregado.”

Como o próprio relatório afirmava, de fato, cada um dos habitantes do país, em que a idade admitia possuía o seu próprio veículo. A evolução econômica avançara a passos largos.

* * *

Eduardo continuava lendo o jornal. Já estava no terceiro caderno, de um total de quatro. Sistematicamente consultava o relógio. Passava das nove horas da manhã. Deu uma longa olhada pela sua casa. Estava feliz. Até que enfim havia conquistado a sua casa própria. E que família ele tinha! Era sonho antigo, de ainda adolescente: casar-se, ter uma bela família e viver feliz em uma casa suntuosa. Tudo bem que conquistara tudo aquilo com um certo atraso, mas conquistara. Tinha uma ótima esposa, a Júlia e dois filhos: Filipe e Tina.

Mais uma vez Eduardo olhou as horas. Já se fazia 24 horas que não via sua esposa e, tampouco a filha Tina. Mãe e filha haviam saído na manhã do dia anterior com destino ao veterinário. Ocorrera uma emergência e necessitaram levar Fifinha. Fifinha era uma cadelinha pincher muito querida. Era mais velha que Tina e parte da família. A cadela estava ovulando. O médico não ficava muito longe de sua casa, talvez dois quilômetros, mas a demora eram os engarrafamentos. Num país evoluído, onde cada habitante tem o seu automóvel, engarrafamentos são inevitáveis. Portanto, ficar um ou dois dias na estrada, mesmo que a poucos metros de casa é normal.

A primeira mensagem recebida de Júlia, sua mulher, dava a informação de que estava há duas horas e meia aguardando um espaço para deixar o estacionamento da clínica e entrar na rua. Isto no dia anterior. Nas mensagens seguintes, informavam que almoçavam no carro. Depois tiveram que alimentar Fifinha. Em certo momento a cadela resolvera fazer suas necessidades e tiveram que permitir executá-la dentro do veículo mesmo. Em outro momento reclamavam do frio. Já era noite e, depois de um lanche rápido, apanharam cobertores num compartimento próprio no veículo e dormiram na estrada.

Nada era exclusividade de ninguém. Todo mundo tinha uma história pra contar. Existiam equipes médicas especializadas em atendimento veicular. Medicavam doentes, faziam cirurgias das simples às mais complexas; partos dentro dos próprios carros engarrafados. Nunca se conseguiu provas cabais, mas corria pela rádio povo que em certa ocasião, numa determinada auto-estrada, onde houve um engarrafamento que durara vários meses, que uma mulher engravidara-se e dera à luz em trânsito. Não se pode desmentir, uma vez que já acontecera, de fato, mortes, velórios, enterros e missa de sétimo dia nesses engarrafamentos.

Era a glória do mundo evoluído.

Tudo isso tranqüilizava Eduardo. Enquanto a mulher não vinha, tinha a preocupação voltada para si mesmo. O filho Filipe estava há algum tempo lá fora. Logo o garoto entrou na sala e o pai perguntou:

— E aí? Posso ir trabalhar?

— Ainda não disse o filho, como um pessimismo de dar dó, estampado no rosto. —Ainda falta um metro.

O pai ordenou que o filho retornasse para a sua atividade. E o garoto foi. Sua missão era plantar-se na calçada, mais precisamente no meio fio e segurar o trânsito, para que um espaço fosse aberto entre os carros, no caótico engarrafamento e o pai pudesse encaixar seu carro. O garoto já estava de pé havia umas três horas.

Como a vida do Eduardo e família, também outras famílias viviam felizes, se casavam e davam em casamento nos engarrafamentos. Às vezes até divórcios eram concretizados.

Uma coisa era certa: com o excesso de carro nas ruas, e a impossibilidade de se trafegar, o mundo do crime sofrera um grande baque. Roubos de carros chegaram a zero.

* * *

Um país evoluído, onde todo habitante tinha seu carro, desemprego zero e segurança total... quer coisa melhor? E o presidente sorriu largamente. Depois de fumar todo o charuto, acionou um botão e logo saiu do gabinete. Entrou em seu helicóptero e pediu para o piloto:

— Muito bem, Jarbas, toca pra residência oficial!

O piloto prontamente respondeu-lhe:

— Certo, Vossa Excelência. Tão logo os outros helicópteros permitam-me uma brecha no ar, subiremos!

O presidente não morava tão longe do seu gabinete; uns dez quilômetros! Coisa de oito horas de tempo de vôo.

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Valdir Gomes
Enviado por Valdir Gomes em 11/10/2013
Reeditado em 14/10/2013
Código do texto: T4520162
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