ORAÇÃO NA TUMBA DA TV
A imagem morreu, já não transmite nem sequer um sinal de riscos oscilantes tipo daqueles dos electrocardiograma. Nada. Apenas o cinzento baço do écran sem luz, sem reflexo, sem vida.
E no entanto esta caixa aqui abandonada, agora lixo, desperta-me a imagem do que foi um quase ser, agente de comédias, tragédias filmes,
desenhos animados, mas também palestras, debates e notícias, e euforias desportivas e derrotas, e desastres tremendos e chocantes.
Esta carcaça aqui jazente parece pela idade que aparenta ser da era analógica recente, e então terá captado as explosões de ódio em 11 de Setembro,a espontânea demolição do muro de Berlim e, ainda novo, o aparelho terá mostrado também essa imagem dos cravos que em Portugal de Abril desabrocharam em canos de espingarda.
Este cadáver aqui deposto e exposto no recanto do musgo húmido do muro, expulso dum lar como traste velho, teve já altar em sala de família a par da outra família que é sagrada. Fazia milagres também esta caixinha. Agora semicoberto de silvas e ervas daninhas e até abrigo para vespas bravas desperta-me no entanto passados da vida e também de morte.
Cruzam-se –me na mente como afagos do suave lar, acordes da amena e doce voz de violinos cortada por golpes de bombo e estrilhar de pratos e clarins.
Mas o silêncio do cair da tarde deste Setembro quente impera, e cala memórias
É meu contemporâneo este traste velho e isso dói-me.
Paz à minha alma.