Brincadeiras de outrora
A Travessa Santa Casa, próxima à Catedral do Divino Espírito Santo, apelidada por nós, crianças, por “beco sem saída”, era o nosso doce reduto, onde, todas as tardinhas, depois de feitas as tarefas domésticas, podíamos ter alguns momentos de lazer.
Aos domingos, nossas tardes pareciam mais longas. Todas as famílias que ali moravam eram numerosas, cada casa, um mundo de crianças. E somente uma exceção. A professora Maria do Inhô tivera somente um filho, que faleceu com poucos anos de vida. De manhã, ela alfabetizava algumas crianças da região e, à tarde, sentada na porta da casa, fazia o seu crochê. Algumas vezes, ela se via rodeada com muito respeito e admiração pela meninada do beco. Então contava casos e dava conselhos sobre alimentação e cuidados corporais.
Foi um período muito feliz, porque tínhamos o privilégio de brincar na rua tranquila, sem a violência e a insegurança de hoje. Os pequenos, na atualidade, vivem fechados, em sua maioria, em apartamentos, privando-se de vários tipos de jogos e atividades que são extremamente saudáveis, desde o aspecto social à saúde física. Com os atuais avanços tecnológicos, as crianças estão se acostumando a brincar com jogos eletrônicos e vídeogame, deixando de interagir com outras crianças, abrindo mão do universo lúdico proporcionado pelo convívio com o outro, por meio das brincadeiras, das quais poucas ainda persistem.
O progresso é importante e necessário, mas as brincadeiras infantis nunca poderiam sair de moda. Elas fazem parte da formação do adulto de amanhã. O brincar revela bem o meio cultural em que a criança está inserida. Vivi numa época que em que as crianças eram muito inocentes e em sua simplicidade aceitavam sem retrucar o que os pais e os mais velhos diziam ser verdade, lenda ou folclore. A orientação sexual era um enorme tabu que os pais não sabiam como com ela trabalhar. Preferiam calar ou mentir para tranquilizar a consciência. A criançada do Beco acreditava que os bebês chegavam até às mães pelo avião. Bastavam sentir uma dor ou mal estar que o avião trazia um novo filhinho. Tudo fácil, como se fosse mágico. Muitas vezes, a brincadeira corria solta quando alguém via passar um avião bem no alto, entre as nuvens, e começava a gritar bem forte, no que era acompanhado por toda a turma: — “Avião, traz um nenê pra mim!” Nesta hora, várias mães, ouvindo a gritaria, chegavam à janela e ralhavam: — “Parem já com isso! Para mim não precisa mandar mais não!”
***
Frei Dimão tá preocupado com estas brincadeiras na rua:
Essas brincadeiras de outrora
da mais pura diversão
passam a namoro fora de hora
na mais alta depravação - Frei Dimão
O retiro que o senhor fez
com os monges do Tibé
Serviu para que desta vez
Suas orelhas ficassem em pé. - Nanda
Porisso apareço cá
com o fito de condenar
seja namoro de sofá
seja namoro de pomar - Frei Dimão
Não se deve só condenar
Esses namoricos de sofá
Nem tampouco os de pomar
É louvável argumentar. - Nanda
Na roça bem sei que houve
pra os jovens impressionar
fininha picaste a couve
e insististe em a refogar - Frei Dimão
Que mal faz impressionar
Aquele jovem sarado
Vale a vida adocicar
E encontrar o felizardo. - Nanda
Pega, moça no bom terço
e começa pois a rezação
mostra que tiveste berço
pra conseguir a salvação - Frei Dimão
Não posso rezar demais
Que o santo desconfia
Já os suspiros angelicais
Os faço de noite e de dia. - - Nanda
Assim sem perder a cordura
eu te ministro a penitência
em meu cajado pois, segura
sem oferecer resistência - Frei Dimão
Já pedi ao Frei Dimão
Dosar bem a penitência
Não carregue assim na mão
E solte na indulgência. - Nanda
***
Não consigo responder à altura do terrível Frei Dimão, mas humildemente seguem minhas contestações:
Como ovelha desgarrada
de meu divino rebanho
quiçá, só exorcizada
voltas ao que eras antanho – Frei Dimão
Se a ovelha desgarrou
Houve aí algum desleixo
Alguém a abandonou
E ela saiu fora do eixo - Nanda
Eu já não nutro esperança
de te salvar a castidade
será o demo com sua usança
querendo tirar-te do frade - Frei Dimão
O mundo sempre oferece
Doçura e encantos mil
Se não houver muita prece
A ovelha não volta ao redil. - Nanda
Pelo caminho que segues
a luxúria está bem presente
só espero que não me negues
que fizeste ato indecente - Frei Dimão
Só realizei umas trocas
Nos nomes de alguns lugares
E conto algumas potocas
Pois só fiz os preliminares. - Nanda
Por indecência eu entendo
namoro com agarração
e nesta ordem emendo
namoro de sofá, paiol e portão - Frei Dimão
Sofá troquei por canapé
Paiol ficou sendo a tulha
O portão foi pro chalé
Onde o par feliz arrulha. - Nanda
Dançar é outra mutreta
que sabes bem de quem é
é coisa do capeta
que te faz desandar na fé - Frei Dimão
Me desculpe, Frei Dimão
Mas a dança eu não dispenso
E espero sua aceitação
Vamos entrar num consenso. - Nanda
Exijo que tenhas presente
esta minha exortação
e voltes a ser obediente
se não castigo-te com meu bordão - Frei Dimão
Vou então para o chalé
Longe de qualquer confusão
Não nado contra a maré
E agrado ao Frei Dimão. - Nanda
***
Vim acalmar ao Frei Dimão. Não quero vê-lo tão bravo assim:
Teu comportamento
de longe eu bem observo
tem mostrado um tormento
pelo qual também me enervo. - Frei Dimão
Eu me sinto neste momento
Entre a cruz e a caldeirinha
É segredo o abrasamento
E como o senhor adivinha? - Nanda
Andas viajando pra roça
com suspeitada freqüência
uma hora o caldo engrossa
e mais grossa,vem penitência. - Frei Dimão
Neste ponto foi bom avisar
Muitos são os perigos da roça
Se a consciência afrouxar
Aí, sim, o “angu encaroça”. - Nanda
Se luz e sol vais buscar
isso só faz bem à saúde
mas cuidado pra não abusar
de atividade mais rude. - Frei Dimão
Sigo muito os seus conselhos
Eles são de grande valia
Para o chão vão meus joelhos
E, em demasia, rezo na abadia. - Nanda
Com isso só quero dizer
que é lindo ver o arrebol
mas calor de inferno há de arder
se isso inclui ida ao paiol. - Frei Dimão
Vire esta boca pra lá,
Não me fale de inferno
Deixemos de tralalá
Eu quero é o gozo eterno. - Nanda
O paiol é lugar proibido
e até motivo de intrigas
pois te levanta a libido
só de passar mão nas espigas. - Frei Dimão
Tá bom, não vou nunca mais
Fazer brincadeiras no paiol
Agora só lugares angelicais
Passarão em meu crisol. - Nanda
Por isso co'o báculo em riste
faço-te nova advertência
ou do paiol tu desistes
ou em dobro terás penitência. - Frei Dimão
Não quero ver Frei Dimão
Tão bravo desta maneira
E com sua absolvição
Serei feliz por inteira! - Nanda