Atemporal
Chegou em casa cansada. Tudo quieto, nenhum gato a ronronar, nenhum cachorro latindo e abanando o rabo. Nenhum peixinho dourado, nem tinha aquário... Tirou os sapatos como de costume, levou-os até a área de serviço. Nem acendeu as luzes.
Tomou um copo de água. Como sempre insípida, inodora, filtrada. Se afundou naquele copo de água. Nadou, nadou, nadou e encontrou um ralo. O ralo da pia, queria sumir nele, naquele redemoinho esquisito que leva o restos embora.
Tirou o vestido preto, como sempre. O apartamento ainda na penumbra. Tomou uma ducha, como quem se prepara para a morte. Lavou os cabelos longos, loiros e verdadeiros, naturais.
Procurou um conjunto de calcinha e soutien, escolheu um nude, bem confortável, como se estivesse se vestindo de pele. Enxugou os cabelos com a toalha, deixou-os úmidos, como os seus olhos estavam. Antes que o relógio anunciasse a hora devida, já que o tempo não fazia muita questão dela, nem os dias, nem os meses; resolveu se esconder em um vidro de perfume,antes que o verdadeiro dono do apartamento chegasse e sentisse um cheiro diferente no ar. As pistas sempre estiveram lá. Os sapatos na área de serviço, o vestido preto jogado no chão da sala, as roupas intimas no cesto do banheiro e a toalha molhada em cima da cama...
Ficou ali, perdida no tempo. Lá embaixo, no térreo, no mural de avisos, um cartão de "Aluga-se apartamento 56, em bom estado, sem mobília", falar com o proprietário, telefone...."