PASSADO, PASSADO. O PRESENTE E O QUE AINDA SEMPRE ESTA POR VIR

Eu acho engraçado esse seu jeito de falar, esse tom meio desafinado. Mas eu nem me importo. Afinal, apenas eu que reparo nesses seus pequenos detalhes como o seu brinco ou o seu esmalte. Apenas eu te observo por inteira. Eu adoro aquela sua pintinha no lado esquerdo da sua barriga que fica um pouco a baixo do umbigo.

Gosto quando você joga o cabelo para trás, esconde sua franja que está começando a crescer em baixo da orelha, e toda vez que eu faço isso para você, você diz que nunca mais vai deixar o cabeleireiro fazer “essa merda”, de cortar sua franja, e eu sorrindo, olhando nos seus olhos digo: te acho linda de qualquer jeito.

De repente olho em minha volta e estou no meio da sala de aula, a professora falando ao fundo, a conversa de todos na sala. Eu estava lá, sonhando de olhos abertos, tendo uma miragem, uma lembrança de algo que nunca aconteceu.

Nessa minha miragem ela tinha os olhos verdes, cabelos pretos, pela branquinha, bochechas meio rosadinha, uma boca pequena gostosa de beijar, um metro e sessenta e sete centímetros de altura. Um olhar misterioso, um sorriso sincero, e essa voz, suave, meiga, desafinada, como se esse desafino fosse cereja em cima do bolo.

- Então é isso Doutor. É essa minha visão. Estou perdendo o sono, estou indo mal na escola, vivo desatento, sem apetite. Por isso minha mãe resolveu que eu deveria me consultar com o senhor. Acho uma atitude extremamente dramática de minha mãe, um garoto de dezessete anos indo ao psicólogo. Mas...

- Olha Michael (Maicon), não tem nada de anormal no seu comportamento, são devaneios da adolescência. Talvez esses seus sonhos, ou visões - como você gosta de falar- tenha algum significado ou talvez não. E quanto a sua mãe, pode deixar que eu vou tranquiliza-la.

E foi saindo do consultório do Doutor Herman, por volta das onze e quarenta e cinco da manhã, em uma tortuosa terça feira fria de Londres, para ser mais exato no dia 30 de janeiro de 1969, dobrando a Vigo Street com a Savile Row, que me aconteceu algo histórico, lendário, extraordinário. Do outro lado da rua, na outra calçada, eu a vi, no meio da multidão que corria enlouquecidamente. A garota da minha visão estava correndo também em direção ao prédio a Apple Records.

Todos corriam, era uma confusão. Eu naquele momento não estava

entendo o que estava acontecendo. Então fiquei parado, estagnado, perplexo, com medo de ser mais uma miragem. Ela estava lá, com uma blusa de lã, cachecol e botas de couro.

E de repente eu escuto ao fundo a música Don Let Me Down. A música vem do alto, e eu ainda meio confuso, olho para cima e percebo que tem uma banda tocando no alto do prédio da Apple Records, e a banda era nada mais nada menos que os próprios Beatles. Uma multidão se aglomerava, era um momento histórico para mim, era um momento histórico para o mundo, mal sabíamos que essa seria a última apresentação dos Beatles ao vivo.

E eu fui tentando chegar perto dela. Estava uma confusão na rua, cada vez mais pessoas se amontoavam, e ficava difícil se aproximar. Todos queriam ver a banda, mas isso era praticamente impossível. Às vezes, a música era interrompida onde ouvia-se apenas a voz de John Lennon e Paul McCartney conversando.

Nesse momento onde parecia haver um silêncio, onde todos paravam para ver se conseguiam escutar o que se estava conversando lá em cima, nesse súbito silêncio eu consigo me aproximar dela, em meio a empurrões. Foi nesse mesmo momento que o meu olhar, com o seu olhar, se cruzaram, se depararam, um ao outro, seus olhos verdes, meus olhos azuis. Tudo pareceu parar, tudo ficou mudo, por alguns segundos, eternos para mim, eternos para ela. E esses segundos eternos são interrompidos com o som entretendes das guitarras, onde mais uma vez os Beatles tocam Don Let Me Down.

E eu disse:

- Oi.

Ela:

- Oi.

Os seus olhos lagrimejaram. Eu me aproximo mais, e ela diz:

- Eu te vi em meus sonhos.

Eu a digo:

- Eu te vi no meu futuro.

Então eu a segurei pela cintura com uma mão e a trouxe para mais perto de mim, e com a outra mão no seu rosto. Sua franja caia sobre seus olhos, e eu as coloquei em baixo de suas orelhas, e olhei sua boca pequena, passei meus dedos pelos seus lábios, enxuguei suas lágrimas e a beijei.

Desse dia em diante nunca mais saímos perto um do outro. Tivemos nossas brigas, nossos momentos felizes, nos acordos e desacordos. Ela foi minha companheira e o seu parceiro, proliferamos e multiplicamos o nosso amor, através de vocês, meus filhos.

Faz exatamente 44 anos que nos conhecemos, e hoje, justo no dia do nosso aniversário ela decidiu partir. Contudo sua passagem aqui na terra não foi em vão, porque além de ter deixado sua marca e sua prole, me deixou aqui, para contar essa historia, diante do seu caixão, perante vocês em seu funeral, para vos dizer, que sim, podemos ainda acreditar no verdadeiro amor, e que um amor tão grande assim supera tudo, que o amor é a força maior desse universo, vencendo até mesmo o tempo e a morte.

E que fique cravado em seu epitáfio: “Não estou aqui, mas te espero lá em cima”.

Brenner Vasconcelos Alves
Enviado por Brenner Vasconcelos Alves em 28/10/2013
Reeditado em 04/11/2013
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