Olhos de ressaca

E então, a pessoa não descansa nunca. E não consegue se esquecer de coisas relacionadas ao ofício, nem quando leva a filha ao pediatra. E nesta hora, em que o dia não é mais dia, e a noite "é apenas uma criança", a pessoa se vê lendo um texto de Clarice, e não sabe por que cargas d'água lembrou-se de D. Casmurro. E se pega analisando, já não mais o texto (nem o de Clarice, nem o de Machado...) mas os próprios pensamentos. E eis que se lembra de Capitu e do que o pediatra havia lhe dito há alguns dias ao examinar os olhos da sua pequenina: ela tem um pouco de sinais embaixo dos olhos, marcas de pessoa alérgica.

"Olheiras, doutor?"...

"Não, chamamos de olhos de ressaca"...

"Olhos de ressaca?

_ É, de alergia crônica mesmo... - responde o médico, enquanto volta para sua mesa, sem maiores detalhes do diagnóstico. E os olhos da menina, lindos e brilhantes, fitam os olhos da mãe esperando uma resposta que explicasse o que o doutor queria dizer.

A mãe olha para o doutor, ele solta um risinho... E, obviamente, a mulher (pessoa tão clicê, coitada) só tinha uma resposta: "olhos de Capitu, meu amor. Um dia eu lhe conto essa história, minha Capituzinha" - disse, esperando que a filha lhe dissesse: "não, por favor, conte agora!"...

Mas a menina não o fez. Apenas olhou para a mãe com ar enfadonho como se lhe chamasse à atenção:"isso é hora de literatura?"... E se voltou para o médico que, naquele instante, era mais "inédito" (palavra preferida do pequenino vocabulário da menina) ou mais importante que qualquer história.

E assim, curiosa com o inusitado, a menininha sentou-se. Muito compenetrada, ficou ali, quietinha, observando, especialmente o papel em que o doutor escrevia. Olhar fixo da menina no papel e olhar fixo da mãe na menina.

Pois é - diz a pessoa, em pensamentos - nesta fase da vida, ainda não há interesse em olhos de ressaca...

Mas, para a pessoa, que nunca se desliga, tudo faz sentido, especialmente literário, a qualquer hora do dia, em qualquer lugar, sozinha ou acompanhada... Fica ali, não mais no consultório médico (agora, em casa, com o texto de Clarice à sua frente e o de Machado de Assis misturado aos seus pensamentos), refletindo:

"Tenho uma Capitu em minha casa, sinal apenas de alguma coisa crônica ou de inspiração? - Preciso registrar isso".

(Adriana Luz)