IDEOLOGIA CABOCLA

A cabeça do caboclo é muito diferente da cabeça de quem mora na cidade e vive exposto aos meios de comunicação de massa. Caboclo é a gente mais real-fantasiosa que há. Ao mesmo tempo que é desconfiado, como seus ancestrais indígenas, é também muito crédulo. Admira a retórica na boca de gente elegante e enganadora. Concebe-se como o matuto não merecedor de privilégios dos entendidos. São sonhadores, mas sabem como ninguém que sonho é só para se sonhar e deve ficar sempre somente na cabeça.

Caboclo gosta mesmo é da orgia da mata, com a excelsa cantoria da passarinhada, de insetos, de répteis e de mamíferos selvagens ou domesticados. Embebeda-se com o cheiro das plantas nativas, capins ou árvores plantadas, e com as bostas de bicho. Reverencia a água, uma de suas maiores fontes de alimentação. A natureza é sua maior sedutora e musa inspiradora.

Caboclo não se casa. Junta-se. E comunga tudo com a(o) companheira(o): trabalho, esperança, sonhos, pesares, ignorâncias, enfados, bóia, pirão, alegrias e prazeres caboclos. E nem precisa de cartório para legalizar as coisas. Vale a palavra de honra do caboclo. Cartório é coisa para o citadino, que deve se precaver do calote civilizado. Mas caboclo também não é santo. Mente. E quando mente, jura por todos os santos que está falando a verdade. Cruel é o coração que não lhe acredita.

A mulher cabocla não engravida. Embucha. Fica de barriga. Emprenha. No mato, esta não sofre dos melindres da mulher urbana. Tudo o que vier a sentir faz parte da trama da multiplicação. Bebê não é nome apropriado ao que vai em seu ventre. Bebê é apelido estrangeiro e caboclo é nacionalista. E ninguém faz baby-chá para seu nenê. Se não puder adquirir uns cueiros de chita, engoma uns panos velhos e faz umas fraldas para o pançudinho. Mamadeira pra quê, se o dedo da mãe pode botar o mingau na boca do fedelho?!

Mas essa parideira, sempre que pode, tem resguardo para não sofrer mais tarde males piores, nem anda de salto alto durante a buchudez. Toma caldo de galinha pra ter força e leite com que possa alimentar o filho. No mato, a lei natural é que comanda, por isso a mulher cabocla não nega, com medo que caia, peito ao filho, como a mulher civilizada, que guarda as tetas para o marido.

A jovem cabocla não menstrua. Fica doente. E nesse período não pode fazer estripulias. Nem comer ovo ou frutas cítricas. Nem comida reumosa. Tomar banho no rio ou igarapé nem pensar! Seu absorvente geralmente é pano engomado.

O couro cabeludo da cabocla vai idosa, se enfraquece, é pelo sol e não pelo secador dos salões de beleza. O caboclo não vai à privada defecar. Vai ali obrar. Não sofre de disenteria ou diarréia. Tem caganeira. Vez por outra, não fica meditativo. Fica desconfiado. Este não sofre de depressão. Passa por recolhimento.

Caboclo não ameaça suicidar-se. Suicida-se. Não faz melodrama. Sofre de verdade. Não ouve música pra disfarçar paixão que o consome. Canta ele mesmo a paixão que sente. Daí a fama do brega rasgado.

Caboclo não se ilude com a vida. Sabe que nasceu para um dia morrer. Não fica à espera de que a ingaia Ciência lhe prolongue a vida ou a juventude. Sabe que ela não é Deus. Não usa cremes a esconder o engelhamento do couro. Nem maquiagem para camuflar a feiúra da cara. Nem desodorante farto contra as naturais catingas. E seus pés nunca conhecerão uma pedicure... Estes têm de ver favorecido o casco duro para as muitas caminhadas. O caboclo apenas se aceita.

As crianças caboclas não adoecem. Sofrem de mal-olhado. Não vão ao pediatra. Vão à benzedeira. Vê-se que homem urbano culto, famoso ou importante morre e vira nome de rua, de prédio, de praça ou doutra coisa. Diz-se que caboclo morre e vira planta, passarinho, assombração ou visagem.

O caboclo não sofre de enxaqueca. Quando fica acamado, é porque está doente mesmo. Ou reconhece que está cheio de verme. O caboclo não dissimula o que sente. Quando odeia, odeia, odeia. Quando ama, ama, ama. Ama profundamente.

A família cabocla não é preguiçosa, como dizem os avarentos que poupam os dias. Ela dorme cedo e cedo acorda para trabalhar em busca do mínimo necessário. Não gasta seu tempo em frente à TV. Nem se reúne continuamente em mesa de bar. Não torce por time de futebol. Nem sabe nada sobre novelas. O vício dos jovens caboclos não é a maconha, ou a cocaína, ou a heroína, ou o craque. O vício do caboclo, quando há, é a cachaça ou a fofocaína.

O caboclo é cheio de crendices. Mas são os homens cultos e civilizados que fazem pacto com Satã para enriquecer. O homem da cidade vive estressado; o caboclo, encantado. O caboclo puro não se inquieta pelo futuro. Deus está no céu e de tudo cuida.

Para o caboclo, homem da cidade é aquele que pensa ser "cabôco" de melhor quilate.

Janete Santos
Enviado por Janete Santos em 18/04/2007
Reeditado em 29/09/2020
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