Voz à paixão

Ando esquecendo de como gosto do meu café. O espelho não diz muito mais do que o óbvio, os olhos nem ao menos choram. Quase sempre está frio e o tempo maçante, não consigo lembrar quando parei de sorrir apenas quando queria, nem quando a minha melhor vista se tornou uma, quando meus olhos se castraram e meus sentimentos foram parar em uma agenda.

Ando procurando a mim, cada pedaço. De repente a vida pareceu cinza, o que eu digo já não faz tanto sentido. Por onde estive? Abdução, rapto, lobotomia? Talvez estava adormecido. Sim! Dopado, um “boa noite cinderela” triplo, uma bela adormecida do nosso século. Que saco! Por onde estive?

Sei que de mim não sai, não mudei, não casei, nem tive filhos, não tomei nada duvidoso e nem fui apresentado a estranhos. Que perda lastimável… Me perdi no tempo, mas quanto tempo foi isso?

Se não lembro de como vim parar aqui, não saberei explicar a ninguém como isso aconteceu. Talvez um médico possa me ajudar, vou marcar uma consulta, descobrir o que tenho e que palidez é essa em meu rosto. Vamos! Um café para ajudar a pensar, sem açúcar, puro, amargo.

Que gosto horrível! Costumo tomar isso mesmo? Espera… Falta algo… Uma colher de açúcar talvez, só uma não fará mal. Isso… Bem melhor.

— Me vê também um pedaço daquele bolo… Esse de chocolate.

Acho que posso ter batido a cabeça em algo, sou um desmemoriado, mas do que esqueci? Lembro dos meus últimos dias, porém não dos primeiros, meu primeiro beijo, meu primeiro amor, a primeira vez que cai de bicicleta. Onde encontro isso?

Será que salvei em algum lugar, em uma pasta de memórias, ou melhor, “meus primeiros acontecimentos da vida”? Parece que não. Sentir saudades não é muito comum para mim, aliás, há tempos não paro e sinto algo realmente que faça alguma diferença, apesar de ter certeza de um dia já ter sentido.

Onde foram parar? A paixão! Onde foi? Acho que a senti por algumas vezes, tinha algo que a mantinha viva e a mim, vivo. É isso! Preciso encontrar o que a despertava!

Pé no chão, areia, bicicleta, pé-de-moleque, brigadeiro, balanço, batata, abraço, torso, beijo, carinho, manga, amasso, jeans, cerveja, parque, cinema, morango, bolo, sorvete de uva, amora, boca vermelha, piada, escola, filme, câmera e videoclipe.

Paixão! Quase não a reconheço. Agora me lembro de menino dos nossos tropeços, os apegos, aqueles desejos… Da fita cassete! Isso sim era vida, até ficava eufórico em revelar o ganhador da rifa de páscoa.

— Por onde esteve todo esse tempo?

— Estava aqui, até chegar o medo.

***

Foi de repente, se aproximou sorrateiro, aos poucos tomou conta e trouxe também a angústia. Nessa altura já não podia falar mais nada, ficava quieta no meu canto. Nunca fui tão desprezada!

Só ouvia um choro agudo, como quem não quer lágrimas, ficou tão seco aqui dentro, que a tristeza sem ter por onde sair foi parar na pele, que deixou seu rosto assim, um bagaço. Lentamente a preguiça apareceu, arrogante e prepotente, nem um ‘oi’ nos deu, chegou e se instalou.

Tudo uma farsa, a partir daí a verdade sumiu, a sinceridade se mudou e o sorriso se escondeu, tempos difíceis, das vacas mais magras. Nem ao menos um romance, nem daqueles de sessão da tarde. A vida era corrida, não olhava o céu e se bronzeava à luz de tela.

Só agora com a saudade pensei em ter outra chance, mas faltava a coragem, que se fez de rogada até a culpa se despedir. Lhe percebi como nos primeiros passos, aprendendo a andar novamente e a usar o tempo, em vez de ser usado por ele!

Voltou a sorrir, grande avanço, mas não o bastante, há muita poeira, ferrugem, falta de amor, de desejo, de vigor. Muito trabalho. Escute! Depois que terminarmos aqui, ouça bem, não se deixe levar de novo, vou sempre estar aqui, mas não sei quão forte estarei em uma próxima vez.