O cruzeiro
O cruzeiro
Existe na Vila Romana um antigo cruzeiro que guarda muitas histórias de minha família do lado materno. Meu avô, Cesário Alves Araujo, mais conhecido por Cesarinho, adquiriu a Fazenda do Pontal e trouxe a família de Buritis para Divinópolis. A propriedade abrangia desde o local onde hoje está a ponte sobre o Rio Itapecerica até a ponte sobre o Rio Pará. O movimento na fazenda era bem agitado. Meus avós dividiam entre eles e os caseiros os múltiplos afazeres próprios do meio rural como a ordenha das vacas, cuidar dos porcos, das galinhas, da horta. Aos domingos, meu avô dedicava várias horas ao trabalho voluntário na Matriz do Divino E. Santo. Vinha à missa e depois participava da reunião da Sociedade São Vicente de Paulo e, a seguir, já fazia as visitas aos menos favorecidos levando os donativos.
Numa ocasião, sua filha Marieta adoeceu gravemente. Vovô Cesário, neste momento tão difícil, recorreu ao Cristo crucificado com toda fé e esperança. E quis marcar sua fazenda com a cruz. Este gesto cristão traria a cura para sua filha e também muitas bênçãos para sua família. A veneração à Santa Cruz é uma tradição que vem de longa data e sua celebração acontecia no dia 3 de maio. E neste dia do ano de 1939 meu avô, num ponto alto de sua fazenda, assentou a cruz de madeira onde até hoje ela permanece já bem envelhecida pelo tempo. E a família com certa frequência ia até ao cruzeiro para rezar, para agradecer e continuar pedindo as bênçãos de Deus.
Morava com meus avós uma senhora idosa, a Chica, que tinha um certo atraso mental, mas possuía uma grande piedade num coração de criança. Tratava-nos com carinho e atenção. Mesmo não entendendo bem o seu linguajar, gostávamos muito de estar em sua companhia. Quando menina de cinco anos morei na fazenda de meus avós dela guardando boas lembranças. Em certas épocas do ano, a seca era forte, os pastos acabavam e precisava rezar para chover. Chica reunia a criançada, apanhava camará, hibiscus e pavilhão, flores do jardim que ela mesma cultivava, arranjava vasilhas com água e todos subíamos o morro até o cruzeiro. Chegando lá ela cantava e rezava. Nós crianças, em silêncio respeitoso, só escutávamos pois não sabíamos acompanhá-la nas orações. Depositávamos ali as flores, despejávamos a pouca água que havíamos levado. E depois felizes voltávamos para a casa da vovó. Deus se comovia com a piedade desta senhora, acompanhada pelas crianças, e à noite vinha a abençoada chuva.
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O debate começa quente nesta página:
Preciso que saibas agora
o quanto me é urgente
extrair-te a confissão, senhora
pra evitar o inferno iminente. – Frei Dimão
Meu querido Frei Dimão
Do inferno tenho medo
Farei uma preparação
E contarei meu segredo. - Nanda
Na confissão mantém decoro
como uma ovelhinha no altar
pra ouvir que vale ouro
o que doravante vou recitar. – Frei Dimão
Pode ficar bem tranquilo
Que saberei me comportar
Se o senhor manter o sigilo
De tudo que lhe contar. - Nanda
É portanto plena de fé
que o Evangelho sais a buscar
por tortos caminhos até
para um dia o encontrar. – Frei Dimão
Meus caminhos tortuosos
Isto até posso adiantar
Já se tornaram amorosos
Não posso me lamentar. - Nanda
Por isso faço questão
de repetir o que antes disse
nada de namoro de portão
de paiol, sofá ou outra tolice. – Frei Dimão
Eu não posso prometer
O que não posso cumprir
Se eu vier a desobedecer
No mal vou me induzir. - Nanda
Urge pois que te mantenhas
na vera fé mais entranhada
e por entre penhas e brenhas
sejas a ovelha tresmalhada. – Frei Dimão
Falar parece uma graça
Mas fazer é que são elas
O paiol me torna devassa
Praticando as apalpadelas. - Nanda
Mantém assim a castidade
a todo e qualquer custo
não reveles nem a metade
de coxa, ombro ou busto. – Frei Dimão
Nesta altura do campeonato
Quase tudo alastrou
É aqui que me arremato
Obrigada que me alertou. - Nanda
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Frei Dimão, eu bem sei quem é este passarinho verde! Estamos ensaiando muito para a apresentação no dia 16 de dezembro.
Por meio de minhas leituras
soube-te na dramaturgia
veiculando idéias puras
sem nada da falsa orgia - Frei Dimão
Meu querido Frei Dimão
O passarinho verde ouviu
Ao dar-lhe a absolvição
E seus pecados extinguiu. - Nanda
Um gesto desses aprovo
segue de Cristo o caminho
por isso ora eu renovo
que da coroa quebro um espinho. – Frei Dimão
O passarinho verde aproveitou
E deu-lhe minhas notícias
Frei Dimão agora aceitou
Minha vida de delícias. - Nanda
Sê de Cristo seguidora
por veredas trevosas
tu, humilde pecadora
um dia colherás rosas. – Frei Dimão
Frei Dimão então reconhece
Que meu caminho é pro céu
Só vai pra lá quem merece
E tudo fez pra ganhar o troféu. - Nanda
E amando o Pai sempiterno
é hora de a página virar
ou de trocar o caderno
para um santo regozijar. – Frei Dimão
Já troquei muitos cadernos
Neste mundo de meu Deus
Já ganhei carinhos ternos
Já doei abraços meus. - Nanda
Afasta-te pois do paiol
e distancia-te do portão
pois há muita jovem de escol
que cai fácil na tentação. – Frei Dimão
Eu tomo muito cuidado
Em seguir os seus conselhos
E tenho me acautelado
Senão em me destrambelho. - Nanda
E antes que vás dormir
entrega-te a oração
espia sob a cama a seguir
se em vez do urinol há ladrão. - Frei Dimão
Quando era ainda criança
Eu olhava debaixo da cama
E dormia com segurança
Pois acabava o meu drama. - Nanda
Deitada, com os anjos sonha
lindas cores, belo porvir
mas jamais permitas a fronha
teus segredos descobrir. – Frei Dimão
Quero sim ter lindo sonho
Com anjos em profusão
Cuido bem, não me exponho
Para a fronha de plantão. - Nanda
Pra mim é que hás de os contar
sem esconder um que seja
e aí se na conta um faltar
aí sim temos peleja. – Frei Dimão
Frei Dimão terá paciência
Em ouvir o sonho meu
E ao tomar dele ciência
Vai ser o meu cirineu? - Nanda