Celebrando a cadeira-de-rodas

Com um metro e noventa e quatro, pesando noventa e seis quilos, e chato pra cacete com gente filho da puta, que não respeita os direitos alheios – ainda que esse alheio não fosse eu, arrumar confusão era tão fácil quanto beber um copo d’água.

Lembro duma vez em que um sujeito, morador do mesmo bairro – que bebia no mesmo bar onde eu divertia a turma com algumas piadas - ao mexer com minha então esposa, lhe dirigindo um galanteio explícito, sem a menor cerimônia e pouco se importando se o marido por perto ou não, ela que devia estar com seus 35 anos, logo um amplo indicativo de que não se tratava de nenhuma donzela disponível, recebeu de mim um dos socos mais potentes que um homem com a massa muscular que eu tinha podia desferir, o jogando contra uma pilha de garrafas acondicionadas no chão.  Depois disso ele ainda tentou se aproximar, acho que no afã de se desculpar. Mas, ainda jovem, o que me dificultava melhor reflexão, e ainda repudiando sua conduta, que parecia seu proceder natural, jamais permiti. O bairro era o Vale dos Lagos, na Paralela, em Salvador.

Outro episódio foi quando meti a mão nas fuças dum sem-noção de limites, metido a valentão, também morador do bairro, que vivia desmerecendo as pessoas, fosse homem ou mulher, na frente do marido ou da esposa, dizendo, pessoalmente, mas que em suas indiretas covardes, e desrespeitosas – o que me deixava ainda mais indignado, que muitos ali caiam ‘no ovo’, e arrotavam caviar, sem ter merda no (...) pra (...) - e em tom provocativo, apontando as pessoas, pelas costas, com gestos faciais - quando ele era o primeiro a dar uma de porreta sendo que era mais quebrado que o mais fraco de posses, morador do lugar. Mas até aí nada fazia, ou lhe dizia. A jiripoca piou no batente dele quando, sem saber que naquele dia eu estava sentado no ovo (é figurado, mas quem já sentou sabe como fica o humor), ele veio pro meu lado. - Foi um pau tão bem dado que um carro quase atropela o infame, tamanha as fichas que saiu catando dum lado a outro da rua. Caindo a uns 10 metros por ter tentado evitar o tombo, de tão forte que o fie duma égua era.

Nas duas situações eu podia ter levado um tiro?! Podia! Como também poderia não está vivo em sobrevivendo a esses eventos, como efetivamente sobrevivi, se viesse a protagonizar futuras situações semelhantes.

Dando uma passada por outro acontecido, este mais recente e não relacionado a nenhuma peleja, já depois de ter perdido os movimentos das mãos e pernas, me recordo do dia em que, a caminho duma reunião muito importante, tendo um de meus filhos ao volante do carro, eis que, numa estrada pra lá de perigosa, o pneu estoura. Pensando no atraso, comecei a resmungar. O menino havia saído para buscar socorro - já que estávamos sem o estepe. Sem o que fazer, e sem poder sair do carro ou sequer dar uma viradinha pra descansar ao menos uma das bandas da bunda, e me pondo a olhar a ermo, observo a curva uns 200 metros à frente. E então uma pergunta passou a me inquietar: o quê será que aconteceria lá, se tivéssemos avançado?!; e pensando nas piores possibilidades, comecei a agradecer a Deus por ter nos parado ali.

Como também não sei o que teria me acontecido se esta cadeira-de-rodas, a qual tenho tido como parceira e conselheira, não tivesse entrado na minha vida, e sabedor dos livramentos, como dizem os evangélicos, que o Criador das Coisas, mesmo sendo o pecador que sei que sou, têm me dado desde que nasci, e que não foram poucos a ponto de não ser possível se relatar mesmo numa centena de páginas, é que registro este agradecimento.

Agradecimento sim – também porque sei não ser comum o sujeito quebrar o pescoço e continuar batendo o olho. Pois posto os dois parágrafos que abrem esse texto, não sei que tempo teria para fazer por mim, pelos que me tem procurado, pelos meus – e até pelos que tem sugado o meu sangue e me enganado, se tivesse continuado a andar com minhas pernas. Mas sei o que tenho feito por todos estes depois de andando sem o uso das forças delas – agora paralisadas.

Além de a situação, que me traz aqui a celebrá-la, ter descortinado amizades de anos de mentiras; mas que também me trouxe tantas outras que me tem sido de imensurável envolvimento fraternal, como por me ter oportunizado o encontro com aquela que veio a se tornar minha esposa, cuidadora, amiga, e leal companheira; que carrega meu nome escrito entre os ombros, como que a simbolizar que aonde for lá estarei – e que sempre presente em meus versos. Tudo, creio, previsto pelo Onisciente e Altíssimo – único que sabe do amanhã. E que acredito tenha me permitido o mergulho que me parou, para muitos, inexplicável haja vista a altura de meio-metro, do paredão de onde pulei à água, com profundidade suficiente para não ter acontecido. Por isto a celebração.

E aqui, lembrando que diante do que se fez com Jesus Cristo, o filho D'Àquele que me deu, e me manteve a vida, onde se dilacerou seu corpo da forma que se sabe, mesmo tendo Ele vindo com o propósito à que veio, e sabedor que carne mais nenhuma deveria sofrer zelo por Aquele que o enviou, mas apenas cada alma cuidada, nada tenho a reclamar pelas dores que passaram a me acompanhar. Mas a celebrar, nesse 15 de novembro, pelos 15 anos da minha bendita cadeira-de-rodas.

Obrigado Senhor, mas não só pelo que penso ter-me tornado uma pessoa melhor, mas, também, pela permissão da continuidade!