DIVAGAÇÕES

São onze horas e meia da noite deste sábado, prolongamento do feriadão iniciado na quinta feira, dia consagrado, em Natal, à sua Padroeira, Nossa Senhora da Apresentação. Sem conseguir conciliar o sono, levanto-me, abro a porta que dá para a varanda e olho a rua. Poucos veículos a cruzam, ao contrário dos dias comuns. Pela calçada do lado oposto caminha, desacompanhada, uma mulher que, pelo andar e a saia curta, parece ainda jovem. Admira-me a sua coragem, nestes tempos violentos, de andar só e fico acompanhando-a com o olhar até que entre à direita na Rua Manoel Machado. Fico preocupado e, mesmo sem saber quem é, temeroso de que algo lhe aconteça. Em seguida, olho para o céu em busca das estrelas, não para tentar entreter-me conversando com elas, como fazia o poeta Olavo Bilac, mas para contemplar a sua beleza, meditando sobre quem as teria feito e as posto no devido lugar; os astrônomos certamente que as identificam, sabem o nome e o tamanho de cada uma. Quando o céu está limpo e elas aparecem em todo o seu esplendor fico tentando localizar, entre muitas constelações, o Cruzeiro do Sul, As Três Marias, a chamada Escorpião, inclusive a que o povo chama Sete Estrelas, um conjunto de sete estrelas próximas e muito brilhantes. Não dá para calcular a provável distância entre uma e outra nem o tamanho de cada uma, sempre que me quedo a admirá-las, ocasiões em que me ponho a meditar o quanto é incomensurável o Universo e quão poderoso é o Deus que o criou e governa.

No entanto, um nevoeiro que vai de uma latitude a outra do firmamento, me impede de vê-las. De repente, sinto no rosto os respingos de uma fina neblina. Estendo as palmas das mãos para sentí-los. Não sou meteorologista, mas sei, por longa experiência, que não vai chover forte. E me pergunto: por que o céu, que à tarde estava tão limpo, azul de Norte a Sul, agora está totalmente encoberto? Parece a Natureza lacrimejando.

Na minha idade tudo é motivo para reflexões. Então, dei vazão ao meu pensamento, deixei-o divagar, retroagindo pelos muitos anos, dos mais distantes aos atuais. Vi-me menino, lá em Mossoró, sentindo o sereno, que era aquele pinga-pingando que costumava acontecer após as pesadas chuvas que caiam à tarde, acompanhadas de raios e fortes trovoadas, naqueles anos de fortes invernadas. Minha mãe costumava dizer-me que, em 1924, o ano em que nasci, as águas do Rio Mossoró extravasaram o seu leito invadindo ruas e praças.

No de 1934 eu tinha dez anos. As águas do rio cobriram o Salgado, que era um extenso descampado, circundando a antiga Cadeia Pública, em que apenas algumas velhas carnaubeiras se destacavam na caatinga, e onde a Prefeitura depositava o lixo da cidade; as águas do rio alcançaram a calçada do templo da Assembleia de Deus, que ficava na ponta do quarteirão onde eu morava, na antiga Rua Pe. João Urbano, hoje Dix-sept Rosado. Naquele tempo, segundo o Prof. Raimundo Nonato da Silva, o casario cuja frente dava para a Cadeia Pública a partir da casa do carcereiro José Faustino, era chamada de Rua da Frente. Homens e meninos alegres e despreocupados tomavam banho nas águas da enchente. E eu também. Mesmo tendo sido antes um aterro de lixo, nunca tive notícia de que alguém houvesse adoecido por banhar-se lá, em suas águas poluídas.

Dizia-se apenas que um rapaz, filho do então sacristão Zé Gregório – este um senhor moreno, alto, de bigode, paletó, gravata e chapéu - morrera afogado por haver caído no remanso que se fazia na queda das águas, que se tornavam volumosas e violentas ao transporem a barragem.

Vejam só por onde andou, em poucos minutos, o meu pensamento. Mas não foram só essas as suas andanças. Voltando a olhar para a rua lá embaixo, em lugar do asfalto minha imaginação, numa fração de segundo, se transportou para o chão da antiga rua em que eu morava. E recordei o tempo em que esse chão era de barro e nele, nas tardes de verão, centenas de canarinhos amarelos vinham em bandos, chilreando e bicando a escassa grama que nele se formava, levantando voo sempre que um pedestre, uma carroça ou um raro automóvel se aproximava, indo pousar no pé de flamboiã em frente à casa de Targino Soares, em frente à nossa. Recordei muita coisa e cada recordação recheada de meditações sobre a vida, sobre o tempo, sobre pessoas que, não sei por qual motivo, acorreram naquele momento à minha lembrança. Não medi os minutos que assim passei. Nem sei por que agora os recordo. São divagações da minha mente.

Natal,sábado,23.11.2013

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 02/12/2013
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