O corno e o subalterno

Ele, aspecto horrível, jogado lá no fundo do balcão seboso. Astério é o que chamamos de homem bem sucedido. Médico renomado entre as dondocas da cidade, freqüentador assíduo das colunas sociais, membro do Rotary, graduado na loja maçônica, presidente da seção do Conselho Regional de Medicina e sei-lá-mais-o-quê...

O jaleco encardido e amarfanhado, os cabelos desgrenhados, a barba por fazer e os dentes mostrando um limo que comprovavam a ausência de escovação, contradiziam com a vida nababesca que aquele homem deveria ter. Não fosse pela vestimenta que um dia foi alva, Adolfo não teria certeza de que se tratava de Astério, seu amigo de outros carnavais.

À frente do médico, uma garrafa de cerveja morna, um copo contendo um pouco do líquido amarelo e espumoso, um outro copinho com conhaque de terceira categoria e um sanduíche de mortadela mordido em cima de um pedaço de papel que o dono do boteco jura ser guardanapo.

Adolfo pensou em dar meia volta e fugir ao encontro, mas os olhares se cruzaram e ele não teve saída. Aproximou-se, deu-lhe um tapinha nas costas, abriu um sorriso amarelo e tentou puxar conversa:

- Grande, Astério! Repondo as energias depois de um dia de batalha?

Astério levantou os olhos cheios de lágrimas, enxugou o muco que lhe descia das.narinas com o dorso da mão direita e desabafou. Longo desabafo:

- Sou um homem liquidado, velho... Tudo o que fiz na vida foi em vão. Pra que tantos anos estudando? Sacrifiquei muitas noites para dar conta do curso de medicina... Quantas madrugadas de desespero e sobressalto na residência do Hospital Souza Aguiar? Tantos cursos, seminários e congressos... Quantas velhas mochibentas eu transformei em algo comível...? Ah, repuxei muitas peles, afilei e centralizei muitos narizes, reduzi muitas orelhas de abano, preenchi e coloquei centenas de bundas em seus lugares originais...

- Dinheiro não me falta. – Continuou – Meu Mercedes é único na cidade..., em casa tenho piscina semi-olímpica, quadra de tênis, sauna, academia, biblioteca, salão de jogos e de festas, discoteca... Enfim, tudo o que se possa imaginar em termos de luxo e conforto...

Tomou um gole de conhaque, mordeu o sanduíche e, com a boca cheia, antes que pudesse ser interpelado, ele prosseguiu:

- Dedéa é uma ingrata, meu irmão... Eu fazia tudo o que aquela mulher queria: viagens, festas, roupas caríssimas, carro importado do ano, personal trainer, professor de natação, instrutor de tênis... Comprei-lhe até ingresso numa faculdade particular...

- Não sei o que pensar, meu irmãozinho... - Nova mordida no sanduíche foi arrematada com um gole de cerveja e a lamúria prosseguiu - Você acredita que Dedéa andava me traindo? Não era uma traição qualquer não... Se fosse com o Marco Aurélio que dá em cima de tudo que é mulher... Se fosse com o personal trainer, que é um cara bonito e sarado... Se fosse com o Antonino, professor de natação... – E, balançando a cabeça - Talvez, meu irmão, se fosse com aquele rapazinho que faz limpeza na piscina, eu até aceitasse e tentasse contornar a situação... Adolfo, meu querido, Andréa tava me traindo com o Zeferino... O Zeferino!!!

- Você sabe quem é Zeferino, Adolfo? – E com a mão apoiada no ombro do seu interlocutor - Zeferino é o ajudante do Carambola, aquela palhaço que animava as festas de aniversário dos meus filhos...

Sem coragem de argumentar, Adolfo deu-lhe três leves tapas nas costas e, silenciosamente, bateu em retirada. Ainda ouviu o choramingo de Astério:

- Se fosse pelo menos o Carambola, o titular..., o palhaço... Não, velho..., ela tava dando prum subalterno...: Zeferino, ajudante de palhaço..., um subalterno!

e-mail: zepinheiro1@ibest.com.br

Aroldo Pinheiro
Enviado por Aroldo Pinheiro em 23/04/2007
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