UM AMONTOADO DE OSSOS

Percebia um corpo franzino que se esgueirava rápido, por entre as árvores. Árvores que se escondiam do sol poente, pincelando raios aqui e ali. A noite já se aproximava e o parque, aos poucos, ficava deserto. De repente, ela sentou num dos bancos, de forma inopinada, como se houvesse assustado de alguma coisa. Podia vê-la de longe, e por um momento, pensei em retirar a câmera da mochila e fotografá-la. Mas foi só por um momento. Meu coração disparou, assustado. Ela despencou literalmente no chão. Fiquei meio paralisado, mas em seguida, corri até o banco onde ela estava e abaixei-me, tentando descobrir o que estava ocorrendo, mais do que isso, queria ajudar. Ela estava no chão, a cabeça estirada próxima aos pés do banco de pedra. Ao seu lado, um cachorro preto, pequeno e cheio de sarna, olhava compassivo, como se soubesse o que acontecera. Ou como se fosse rotineiro.

Tentei acordá-la, olhei para os lados, para ver algum passante por perto que me acudisse. Um que outro olhava de longe e se afastava ainda mais. Peguei a sua cabeça entre as mãos. Era tão pequena aquela cabeça, que parecia um crânio vazio, sem cabelos, sem pele, sem couro cabeludo, apenas ossos. Era leve. Tão leve, que nem parecia de um adulto. Pior, de um ser vivo. Ela abriu os olhos que se revelavam ainda maiores, talvez pelo rosto mirrado. Parecia ensimesmada, como quem diz, o que este cara quer aqui? O que faz ao meu lado? Moveu a cabeça, tentou levantar-se. Falei, que bom, já está melhor. Que aconteceu? Você se machucou? Não respondeu. Conseguiu sentar-se, ao lado do banco, no chão mesmo. Esticou as pernas finas, envolta em andrajos sujos e os braços seguravam-nas como se tentasse se equilibrar. Senti que as mãos tremiam. As mãos, ao contrário da cabeça, eram grandes, disformes, com sulcos esbranquiçados nos dedos escuros. A pele negra nem tinha uma cor definida, como se o sol, o tempo, o vento ou qualquer fenômeno da natureza a tivesse desbotado. A boca era carnuda, mas era da mesma cor da pele. Não era nem avermelhada. Tentei ajudá-la a levantar-se. Ela me empurrou. Tinha medo de mim. Queria afastar-se de qualquer jeito. Por certo, dispensava a minha proximidade. Eu era um estranho, que se intrometia na sua vida. Vida. Era aquilo que ela tinha e que me parecia um resquício de sobrevivência. Era o que lhe restava.

O cachorro levantou-se também. Lambeu-lhe as pernas finas e sujas. Agora percebi como eram finas e a roupa que cobria seu corpo estava em pedaços. Nem sei o que se podia chamar de roupa, tal era o estado de sujeira e farrapos em que se encontrava. Havia uma sacola velha, com mais trapos guardados, eu supunha. Estava sobre o banco. Ela segurou-a, empurrou o cão com o pé descalço e para minha surpresa, não foi embora. Sentou-se no banco e ficou ali, olhando para si mesma. Calada, enfiada em suas mais profundas memórias ou na falta delas. Mastigava um ar de nostalgia que me doía o coração. Nem sei porque eu continuava ali. Eu nunca fui dado à solidariedade exacerbada, a ajudas humanitárias. No máximo, levava um pacote de biscoitos a alguma campanha de Natal. O que eu tinha, na verdade, era curiosidade. Mas aquela mulher me tocou. Nem sei se porque eu estava numa fase meio de desamparo, porque há pouco tempo estava sozinho ou porque estava ficando velho, pensei. O fato é que precisava fazer alguma coisa. Não sentei ao seu lado, pois sei que se o fizesse, certamente, ela levantaria de imediato, por mais dificuldade que tivesse. Fiquei em pé, meio distante, eu e o cachorro que agora se preocupava com o seu rabo, procurando-o em círculo. Mesmo assim, distante, eu tentei falar-lhe: — Você está bem agora?

Ela nem me olhou. Ao contrário, levantou a cabeça para o horizonte. As árvores ficavam atrás. O sol ficava na frente. O sol que enfraquecia, cujos raios já nem se viam, só uma luminosidade difusa que também ia morrendo. Daqui a pouco, a noite chegava. O que ela faria à noite?

— Você bateu com a cabeça. Não ta doendo?

Desta vez, ela se virou na minha direção. Pude ver que devia ter uns 30 anos, se bem que talvez tivesse bem menos, uma pessoa naquela condição pode representar bem mais. A pele ficou mais escura com a diminuição da luz, mas pude ver um certo brilho nos olhos. Um brilho que me incentivou a continuar.

— Não está com fome?

Ela falou alguma coisa ou tentou falar. A voz era gutural. Como oriunda de um túnel. Talvez não não falasse com alguém há muito tempo. Mesmo assim, ela proferiu alguma coisa, o que era um avanço. O maior desafio agora, era entender o que queria. Voltei a perguntar: — Está com fome?

Ela esboçou um sorriso, que me fez estremecer. Abriu a boca, na qual surgiu mais gengiva do que dentes, aliás um que outro se escondia quase no final da arcada. Foi aí que ela apontou para o cachorro.

— O cachorro? Ele está com fome?

— Cachorra. — agora entendi, ela me corrigia e com bastante consistência. Tratava-se de uma cadela, não de um cachorro. Aquilo era importante para ela. Era a sua companheira, por certo.

— Cida.

_Cida? - perguntei meio bobo. Falava da cachorra ou dela? Quem era Cida? Cida, Aparecida, devia ser ela. Mas ela repetiu a frase, afirmando que Cida estava com fome.

Mas Cida poderia ser ela e ela estaria certamente com fome, mas como garantir a mim mesmo que ela se referia ao animal, assim, categoricamente. Como perguntar a ela e revelar que no fundo, eu confundia a cachorra com ela? Não apenas pelo nome, mas até pela situação. Eram tão parecidas! E estavam com fome. Tudo acontecia em nível interno, quase inconsciente, em que meus pensamentos se misturavam com centenas de experiências que não conseguia interpretar. Eu não sabia muito bem o que dizer, o que pensar, e só dizia bobagens. Na verdade, eu estava confuso. Talvez tão confuso, quanto ela. Na verdade, tinha comigo de que ela não passava de uma uma louca, provavelmente drogada, e quase uma certeza, usuária de crack. Sim, sem dúvida. Quem seria aquela mulher mirrada, de vida espremida num fim de dia num parque cuja vida passava por ela. Havia mais vida na cadela, certamente. Uma mulher infeliz. Uma mulher que acabara de cair, de desmaiar, não tinha certeza e que agora mostrava-se somente preocupada com a cachorra, que tinha fome. E ela? Não tinha fome? Não, ela queria drogas, só isso.

—Cida está com fome? — apontei para a cadela. Ela sorriu mais uma vez, agora concordando. Aquele sorriso que eu não gostaria de rever. O sorriso disforme, atravessado entre poucos dentes e gengiva mole. Sorriso nefasto de quase animal. Aliás, chegava a parecer-se com a cadela, tal a deformidade da boca. Enviesada, amolecida. Então, indaguei, enfático, tentando ser entendido: — e você, não está com fome?

Ela abaixou a cabeça, como quem diz, que interessa agora. Alguém tem que se salvar. Que se salve Cida.

Então, acrescentei que traria algum alimento para Cida e também para ela. Ela me olhou mais uma vez, acho que seria a última, porque seus olhos estavam tão vazios e perdidos, que pensei que fosse morrer naquele momento.

Afastei-me rápido, atravessei o parque, procurei uma lancheira no outro lado da rua e em seguida, estava de volta. Cida parece que sabia o que eu ia fazer, porque me seguiu o tempo todo. A cada contorno que fazia, ela me acompanhava solidária e esperançosa. Quando me dava conta de voltar-me, observa-a que me olhava agradecida. Quase sorria. Um sorriso tão semelhante ao da mulher, mas que me deixava feliz, porque era o sorriso de Cida. O sorriso da cadela. Comprei um sanduíche e já na saída da lancheira, dei-o a ela que o engoliu quase instantaneamente. A baba ainda escorria da boca, quando lambia o prato de isopor. " Você está com fome, mesmo, hem Cida. Não adianta pular em mim, este é pra sua dona. Depois, te dou outra coisa, noutra hora.”

Atravessei a pequena viela que conduzia até o interior do parque. Vi ao longe, já quase na escuridão, um amontoado de ossos, encostado no banco. A mulher estava com a cabeça baixa, coberta por um pano, que lhe tapava a boca. Aproximei-me com o lanche. Tentei entregar-lhe, mas ela nem me reconheceu. Cheirava alguma coisa numa lata e se enrolava ainda mais num trapo sujo. Cida afastou-se de mim e se aproximou célere, da dona. Sentou-se ao seu lado, como se compartilhasse seu drama. Permaneceu ali, compassiva, esperando. Talvez esperasse horas por alguma reação. Ou não esperasse nada. Nem um afago na cabeça, um sorriso, um coçar na barriga. Talvez apenas esperasse um empurrão em suas coxas magras. Era de hábito. Um hábito bom, do qual ela já se acostumara. Era o carinho que lhe restara. De todo modo, estava alimentada. De vez enquanto, seu olhar pairava no movimento tépido das folhas da árvores, investigando algum movimento diferente. Mas eram apenas as folhas, agora amarelecidas pelas lâmpadas néon que que se mexiam na noite cada vez mais escura. Somente voltou-se, encantada, quando joguei o lanche que trouxera ao seu encontro. Agora, não o engoliu de uma vez, abanou levemente o rabo, satisfeita e o deixou por um momento ali, talvez pensando que não era para ela. Mas foi só por um momento. Cheirou, cheirou e o engoliu em seguida. Mais devagar, a bem da verdade, mas o engoliu por inteiro.

Afastei-me. Segurei firme a mochila com medo de voltar a atravessar o parque, em virtude dos assaltos. Toquei na câmera, pelo lado de fora, para ter a certeza de que ela estava ali, dentro. Depois, afastei-me devagar. Dei uma última olhada para a cena. Cida voltava a observar as árvores.