O GAMBÁ DA MADRUGADA

Morávamos em uma chácara na avenida Japão. Hoje uma avenida asfaltada e próspera de Mogi das Cruzes. Mas, na década de setenta era de terra com poucas casas de alvenaria, muitos barracos e terrenos baldios. Era periferia. Morávamos em treze pessoas, sendo oito homens e cinco mulheres, além de três cachorros e cinco gansos. A casa tinha quatro quartos e ampla sala. Na cozinha uma mesa de ping-pong, com rede e tudo, e um banheiro. Uma varanda circundava dois lados da casa. A vida se mostrava bela e fértil, principalmente pela ampla gama de alambiques daquela região.

Nós, os moradores, ansiávamos por seguir os passos do mestre Oscar, mas tinhamos uma queda maior para festas. Morávamos em tantos que bastava que aparecesse mais um e já estava configurada uma. Memoráveis aquelas festas. Em uma delas até Hermeto Pascoal esteve, sem falar nas primeiras apresentações do Ultraje a Rigor, ainda sem este nome mas com os seus componentes básicos. Esta festa, em particular, só podia ter sido no dia das bruxas, 31 de outubro, por coincidência aniversário de uma das moradoras, a mais popular por sinal. Grande festa, todos com as suas fantasias e muita animação.

Quase todos os dias da semana, rolaram estas e outras festas. Muitas acabavam depois de passagem do último ônibus circular, que atendia aquela região da cidade, e os não moradores tinham duas opções: ou dormiam pelo chão da sala ou aventuravam-se a pé até a civilização.

Numa destas madrugadas um amigo, que era de Santos, resolveu curar sua bebedeira caminhando até em casa lá pelas bandas da Vila Industrial, coisa de atravessar a cidade sem medo e sem dó. Tentamos convencê-lo a ficar, mas segundo a sua filosofia “Deus protege as crianças e os bêbados”, e lá se foi o moço. Três passos para cada lado e nos cansamos de olhá-lo, passando o caso para a “Divina Providência”.

Coisa de meia hora depois, Tuta (esse era seu apelido), deparou-se com um animal dos mais estranhos, engalfinhou-se com o mesmo, foi mordido e arranhado, mas não se deu por vencido e prendendo o bem, sob uma das axilas e com ambas as mãos, continuou a sua jornada. Atravessou toda a cidade nestas condições.

A luta com o animal, a caminhada morro acima e o ar fresco da madrugada começaram a fazer efeito, atrapalhando o nirvana do nosso amigo, ainda mais que as mordidas e os arranhões, já não mais anestesiados, começavam a incomodar. Decidiu que iria até a Santa Casa para ser medicado.

Ao lá chegar foi logo barrado, afinal ainda agarrava o animal, a esta altura quase sufocado. Tentou argumentar quanto à necessidade, uma verdadeira “urgência urgentíssima”, de sua imediata medicação, mas não conseguiu convencer nem o plantonista nem o segurança. Daí, lembrou-se do mais importante e perguntou: “este bicho é venenoso?” ao que, sob gargallhadas, escutou que não. Afinal, era só um gambá. Coitado do urbanóide, jamais vira um gambá antes, não tinha como saber.

Decidido a ser atendido, percebendo que o animal não era venenoso e, portanto, não precisava estar presente ao ato, soltou-o, sem cerimônia, no saguão do Hospital. Ficou difícil saber quem correu mais, se foram os pretensos captores, as enfermeiras ou o próprio gambá. Foi um verdadeiro “Deus nos acuda”. Um carnaval fora de época. Gritos descabelados e outros tipos de gritos, além de alguns palavrões, antecederam os curativos do nosso amigo, que ainda teve de dar explicações à guarnição da viatura policial que por lá passava. Com isso ganhou uma carona até a sua casa e jamais se aventurou pelas ruas de Mogi na madrugada e, é claro, nunca mais deixou de saber o que era um gambá.

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 23/04/2007
Reeditado em 24/04/2010
Código do texto: T461104
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.