Carne da minha carne

É um fato! Só quem já teve os sonhos arruinados e o coração partido uma vez consegue identificar alguém na multidão que esteja sofrendo deste mesmo mau. O meu já foi partido em milhares de pedaços que nunca pude remendar, eu reconheci este amargor profundo, mesmo de muito longe no caminhar de uma bela jovem. Ela vestia trapos novos, até a sujeira que os adornava parecia ser nova. Tudo indicava que ela era uma moradora recém chegada naquela região imunda onde eu vivia, ainda possuía alguma vaidade para com seus cabelos que estavam quase penteados, talvez ainda houvesse em seu peito alguma esperança de viver em outro lugar, de remover os trapos e voltar a sentir-se mais do que um pedaço de lixo. As sutilezas de seu rosto me diziam que ela estava no início de um longo processo de acumulo de dor permanente, eu já havia passado por este processo, hoje carrego minha dor para onde quer que eu vá, esta dor que já faz parte de mim de maneira inseparável, mas, que um dia talvez pudesse ter sido aliviada. Hoje nem mesmo consigo imaginar como seria voltar a viver sem esses rasgos que me fizeram no amago da alma, mas, quando a moça chegou perto de mim senti que precisava dizer algo a ela antes que fosse tarde demais para salvá-la. Desejei falar algo que a levasse no sentido contrário de onde estava indo, mas, nas profundezas onde meu espírito habitava era difícil motivar alguém a ir para cima. Mesmo assim, fiz o melhor que pude:

---- Que dia horrível não é mesmo moça? Este sol famigerado também está lhe incomodando? - Sua pele era tão branca quanto a minha, como se os deuses houvessem esquecido de nos pintar antes de jogar-nos neste infame planeta.

---- Não mais do que o seu cheiro repugnante de esterco! - Ela me respondeu com desprezo e ódio, como se o sol não lhe castigasse mais do que minha presença.

---- É lamentável que o destino tenha nos feito cruzar a mesma rua imunda desta cidade maldita – eu disse e ela pareceu concordar – Lhe ofereceria minha capa para lhe proteger deste sol nauseabundo, mas, junto com ela é inevitável que o meu cheiro repugnante lhe acompanhe também. Imagino que você não iria querer isto.

---- Melhor o cheiro do que sua companhia! Preferia ser coberta de todo tipo de imundície do que ter que ouvir mais uma vez a sua voz miserável!

Em silêncio, retirei a minha capa e deixei-a cair ao chão. Minha pele, tão clara como a dela imediatamente começou a fritar abaixo dos raios daquela abominável bola de fogo que pesteava os céus, mas, era um sacrifício que eu estava disposto a fazer se com um gesto de bondade fosse possível retirar a moça deste ciclo de degradação da própria mente em que a percebia. Virei-me e fui andando em silêncio, sorria pela primeira vez em muitos anos de angústia, de tão distraído que fiquei ao imaginar a moça recolhendo minha capa do chão para se proteger das queimaduras solares, esbarrei em um homem violento. Pedi-lhe é claro por seu perdão, mas, sua forma de perdoar era arrancar o sangue de meu corpo com golpes do bastão que carregava.

Já fui surrado muitas vezes, conhecia bem os desejos dos homens agressivos, ele não desistiria enquanto não visse um corpo estirado no chão, e me deixava apenas três escolhas: Eu poderia colocar os braços na frente de meu rosto para me defender e apenas fazer o castigo durar mais, poderia me esquivar fazendo com que o número de golpes em meus ombros se tornasse mais uma de minhas dores físicas crônicas, ou então, simplesmente deixá-lo atingir logo minha cabeça e satisfazê-lo mais rapidamente. As vezes penso que quando meu corpo físico está doendo minha alma fica mais leve, como se tudo o que já me foi feito doesse muito menos na memória, baixei meus braços e permiti que o bastão aliviasse o peso de minha vida. Pensei que ao me derrubar a fúria do homem que esbarrei por acidente iria diminuir, mas, ele continuava a chutar meu corpo e minha cabeça mesmo caído ao chão. Existe um eco dentro de mim, a cada golpe que meu corpo recebia uma parte de minha mente se contraía em resposta, era como ver uma luz no fundo dos olhos ou ouvir um zumbido de sofrimento no fundo dos ouvidos, quando isso acontece tenho a tendencia de sonhar, de abrir os olhos para tentar encontrar uma rota de fuga e me imaginar correndo, qualquer lugar onde poderia estar em segurança, e enquanto o homem me chutava caído ao chão eu pude ver a moça bem no local por onde desejava estar fugindo, ela já estava coberta com minha capa fedorenta, olhando-me com um misto de nojo e piedade. Pensei que talvez ainda houvesse para ela uma esperança de não se tornar como eu. Imaginei que talvez minha capa a lembrasse de que as pessoas podem ser outras coisas além do que este mundo horroroso nos transforma. Pensando nisso, desisti de correr e permiti que o homem me chutasse até que pudesse perdoar-me pela distração.

Finalmente satisfeito ao me ver estirado e sangrando ao chão, o homem vai embora levando com ele toda a dor e medo que sempre sentiu completamente inalterados. Eu em compensação, tirando o fato de quase não haver uma parte de meu corpo que não estivesse gritando e suplicando pela morte e consequente fim do sofrimento, tinha um sorriso que se mantinha fixo na moça que caminhava insegura em minha direção.

---- Aquele imbecil com o bastão nem pra conseguir matar você? - Ela falou encantadoramente ao mesmo tempo em que cuspia em meu rosto.

---- Ele foi mesmo muito incompetente – eu sorri com os dentes que ainda estavam em minha boca – Sem mencionar que tem um pedaço da minha perna que não foi muito atingido.

---- E a cabeça? - Ela perguntou.

---- Ah! Na cabeça ele caprichou. Não deve ter sobrado nada do que um dia pensei que seria lembrado como um rosto.

---- Na verdade... - ela sorriu ao dizer - Até ficou mais agradável ao olhar, quase consigo segurar a ânsia por vomitar.

Só quem já foi humilhado e injustiçado pelo menos uma vez, consegue se compadecer da dor de outra pessoa, a moça que deixava clara a sua repulsa por mim me escorou-me até uma pequena taberna do outro lado da rua, o local era um antro de bandidos, drogados, dementes e prostitutas infectas com todo tipo de morte lenta. Para piorar eu já havia estado lá e, consequentemente já tinha conquistado o ódio de cada um dos frequentadores noturnos. Tentei avisar a moça que preferia morrer sangrando no meio das ruas com os cavalos excrementando sobre mim do que naquele pulgueiro asfixiante, mas, ela não quis me ouvir.

---- Este homem precisa de ajuda! - A moça gritou para as paredes imundas da taberna vazia, e segundos após ouvimos passos mancos vindo dos fundos. Provavelmente daquela mulher obscenamente obesa que mantinha a casa como sua fonte de renda.

---- Eu sei quem é este homem! - falou a dona da taberna, que ainda lembrava de minha ultima visita e de toda a confusão que minha repugnante presença causou – Aqui ele não encontrará nenhuma bondade! Se quer um conselho, largue-o na rua e não se deixe ser vista com ele ao seu lado! Todos na cidade o odeiam!

---- Pois eu não sei quem ele é, nem o que ele fez! - A moça respondeu – Mas quero que continue vivo para que possa dia após dia a sofrer da colheita de cada semente que plantou.

---- Sua causa é nobre – diz a dona do local – mas, tenho certeza que no inferno ele lembrará por muito tempo do que fez e de quem foi.

---- Escute a puta! – Eu lhe supliquei – Me largue para morrer na rua e tente salvar seu próprio espírito. Não existe mais esperança para mim, mas, você ainda poderá viver para vencer este mundo que me derrotou!

---- Não! - respondeu a moça furiosa – A puta é quem vai me ouvir! Você vai cuidar dele, e vai tratar que ele se cure das feridas e tenha o mínimo de conforto que sua casa pode oferecer, senão voltarei aqui com um exercito armado e farei com que cada frequentador desta espelunca compartilhe com ele o mesmo destino!

---- Um exercito? - A prostituta obesa gargalhou – E quem você pensa que é para voltar com um exercito?

---- Sou a figura que fica queimada no fundo de seus olhos após cada pesadelo – a moça puxou uma pequena corrente do pescoço e tornou visível seu colar, com o inconfundível e temido por todos selo real. Para ter um desses era necessário seu um rei, rainha ou então como no caso dela, uma princesa.

A famigerada prostituta deu um passo para traz junto com um grito que atraiu como moscas para a bosta todas as outras moradoras que trabalhavam naquele desagradável local durante a noite.

---- Vossa majestade! - Falou a gorda com algum respeito pela primeira vez, provavelmente tentando manter sua miserável vida por mais algum tempo – É uma honra para cada uma de nós recebê-la em nossa humilde casa. Faremos o que nos pede. Cada uma de minhas meninas será responsável por manter este homem amaldiçoado longe das vistas de nossos clientes e também o atenderão em suas mínimas necessidades! Certo meninas?

As outras prostitutas pareciam bastante contrariadas com a notícia, mas, o medo sempre foi a melhor forma de manter a lealdade entre os subalternos. Logo duas meninas com feridas asquerosas nos lábios estavam me carregando para um quarto isolado, a moça com o selo real ainda visível nos acompanhou.

---- Você – apontei rudemente para a dor em forma de realeza que fitava-me fixamente – Por que faz isto por mim? Por que está aqui vestida como uma amaldiçoada e confundida com a escória?

---- Meu pai, o rei, tem o desejo de queimar toda esta parte de nosso reino – a princesa respondeu com descaso – São bandidos, vagabundos e outros tipos de dejetos que não pagam impostos suficientes para merecerem o direito de importunar o resto de nosso povo. - Ela sorriu e prosseguiu - Eu não concordei com meu pai! Brigamos e fizemos uma aposta. Se eu encontrasse um único homem de bem nesta região, todos os outros seriam poupados.

---- E você acha que eu sou esse homem? - Eu poderia rir deste delírio se meu peito não estivesse entupido com meu próprio sangue.

---- Sim! Você é o homem que escolhi! Em uma semana meu pai visitará este local, ele lhe fará uma pergunta, e a sua resposta decidirá o futuro de todas estas pessoas.

---- Todas estas pessoas me odeiam! - Respondi a ela olhando para as duas garotas de bocas corroídas pelas chagas da luxuria – Se souberem que suas vidas dependem de minha resposta eles me matarão antes que eu possa sequer ouvir a pergunta do rei.

---- Pois durma tranquilo durante esta semana – a princesa sorriu – Se algo acontecer com você, o rei entenderá que todos deverão morrer. Ele já está a meses planejando mortes lentas e dolorosas com seus chefes de guarda. Mortes horríveis que ele gostaria de presenciar. Ele sente muito prazer nisso sabe?.

---- Seu pai é um sádico maldito – eu lhe disse, talvez inconscientemente desejando que ela me ceifasse a vida ali mesmo, sem ter que assumir o peso de dar ao rei uma resposta com tamanhas consequências.

Ao invés de se enfurecer, a princesa consentiu com a cabeça, virou as costas e se foi. Em pouco tempo percebi que não era apenas o pus que fluía abundantemente pela boca das prostitutas que ouviram a conversa, as palavras também pareciam não poder ser contidas. Logo todos na cidade sabiam onde eu estava e o que aconteceria com eles se eu estivesse de mau humor no dia da visita do rei.

Não lembro qual havia sido a ultima vez que alguém pareceu se incomodar com meu bem estar, agora todos estavam tentando garantir meu conforto. Tive minhas feridas lavadas, fui alimentado com o melhor lixo que havia para comer, minhas roupas pestilentas foram substituídas por sedas finas que logo se encharcaram de meu próprio fedor. As prostitutas insistiam em compartilhar comigo de suas infecções purulentas que chamavam de prazer. Já no primeiro dia homens asquerosos que muitas vezes me juraram de morte vieram submissos me trazer presentes, entre as oferendas, estava o homem que havia me surrado com o bastão no dia anterior, foi trazido amarrado e amordaçado para que eu desfrutasse de minha vingança.

---- Desamarrem-no! - Eu falei já me sentindo o rei de toda a escória e imundícia humana.

---- Piedade! – Foi a palavra que ele me disse, mesmo sabendo que ninguém em minha atual posição iria ouvir.

---- Piedade? - Respondi com meu velho sarcasmo – E alguém neste buraco esquecido do inferno é capaz de sentir piedade? Você já sentiu isto por alguém?

---- Não senhor. – Ele poderia tentar mentir para se salvar, mas, não o fez. O homem olhava fixamente em meus olhos. Só quem como eu, já sentiu o pavor mais profundo da alma conseguiria reconhecer aquele brilho pálido no fundo de seus olhos – Por toda minha vida, conheci apenas o ódio e a raiva que me permitem sobreviver mais um dia. Você sabe como é viver aqui! Se eu não atacar antes que me ataquem não sobrevivo, não teria chegado vivo até aqui.

---- Temo que sobreviverá mais do que imagina – o que eu sentia não era alegria, era apenas a harmonia perfeita que o poder estabelece com a mágoa na doce forma de vingança – Ouvi falar que ninguém poderá fujir, que os homens do rei estão cercando cada maldita esquina deste mictório dos deuses e que ninguém poderá escapar de minha decisão. Acho que a princesa escolheu mal, eu fui odiado por todos, maltratado por todos vocês que agora se sentem ainda mais miseráveis do que já eram diante de mim. - Todos estavam vivendo um pavor silencioso enquanto eu divagava, e causar esta sensação me deixava bastante satisfeito – Mas sabe de uma coisa? Nunca entendi por que vocês me odiavam tanto... O que lhes fiz para merecer isto?

---- Senhor – Um dos homens que havia vindo apenas para tentar me conquistar com presentes de sangue falou tremulo – Eu nunca lhe odiei...

---- Não? Nunca me fez nenhum mal? - Ele talvez já houvesse esquecido, mas, eu não teria condições de esquecer justo o homem que estuprou e assassinou minha esposa diante de meu olhos anos atrás, me aprisionando para sempre neste local amaldiçoado.

---- Não que eu lembre, meu senhor.

---- Ah! Eu vou refrescar sua memória! - Meu sorriso não continha felicidade, mas, minhas palavras carregavam toda minha verdade – Eu nunca me encaixei neste buraco de merda onde vivemos não é? Vocês me odeiam porque um dia ambicionei algo melhor para minha própria vida, por que um dia me apaixonei por uma mulher que poderia trazer alguma luz para essa fábrica de escuridão! Mesmo depois do que me fizeram, eu continuo querendo apenas viver em paz com a dor que me causaram, mas não é assim por aqui, não é? - Olhei para homem que me surrou no dia anterior – Após esbarrar com você eu deveria ter corrido ou atacado não é?

---- Me perdoe meu senhor... - Ele respondeu suplicante.

---- Vocês sabem o que aconteceu com minha esposa? Sabem?!

---- Não senhor – responderam todos quase num sussurro.

---- Ela foi estuprada por horas, torturada, humilhada e finalmente morta! Eu iria sair com ela deste antro, viveríamos felizes longe daqui, mas, vocês não nos deixaram sair. - Eu olhava fixo para o homem que havia cometido a barbaridade, e ele sem lembrança alguma de um fato tão corriqueiro ocorrido a anos atrás simplesmente me disse algo idiota.

---- Sinto muito senhor, por sua esposa.

---- Você estava lá não estava? - Apontei para o homem que dizia sentir muito – Arrebentando o corpo de minha mulher enquanto seus amigos me mantinham imóvel?

---- Não senhor! – Ele respondeu em panico.

---- Não minta para mim pois eu vejo seu rosto a quinze anos cada vez que fecho meus olhos! Nunca esqueci um mísero segundo do que me fizeram viver!

---- Desculpe senhor. Pode mesmo ter sido eu. Fizemos muito isso e me arrependo profundamente se em uma destas vezes foi sua esposa e sua vida que destruímos. Peço que não ordene minha morte.

---- Se você estivesse em meu lugar hoje, o que faria?

---- Eu... - Ele simplesmente não conseguiu dizer.

---- Pensava em ordenar que lhe castrassem, para que não machucasse uma mulher novamente – Mal completei a frase e outros homens apavorados já desembainhavam seus punhais – Mas, isto não traria minha esposa de volta dos mortos, traria?

---- Não senhor – ele respondeu talvez agora desejando a morte.

---- Se eu ordenar que matem cada idiota que já me surrou isso vai remover as cicatrizes de meu rosto? - Eu olhava para o homem do bastão e percebi que ele ainda podia chorar.

---- Não senhor... - responderam todos em voz baixa,

---- Alguma coisa que eu ordene fazer poderá ressuscitar meus sonhos? Reconstruir a casinha em outro reino onde eu viveria feliz com meus filhos que não nasceram?

O silêncio foi minha única resposta, talvez houvesse no interior daqueles homens sonhos como os meus, em milhares de cacos doloridos que rasgam novas feridas pela simples menção. De súbito me ocorreu que minha melhor vingança seria fazê-los lembrar dos sonhos que um dia possuíram, das pessoas que poderiam ter se tornado se não permitissem que a dor e a miséria tomassem conta de suas vidas.

Passei alguns segundos em silêncio, tenho certeza que a expectativa no peito daqueles homens era mais angustiante do que qualquer suplício que eu pudesse fazê-los passar. Nestes instantes pensei em como fui odiado por não me adequar a maneira como todos queriam viver ali, pensando nisto bolei o meu plano mais perfeito de vingança, respirei fundo e em seguida ordenei em alta voz que os campos fossem estercados e que neles semeassem grãos de toda a espécie. Ordenei que pavimentassem as ruas, limpassem o pó de suas casas, pintassem suas fachadas e que dividissem cada um o seu alimento com os vizinhos famintos.

---- Se hoje eu sou o rei de toda esta escória, vocês serão meus arautos! Espalhem minhas ordens, e enquanto isto quero ser deixado em paz! Quero todos trabalhando em melhorar a vida uns dos outros! Um dia antes da visita do rei vou passear pelas ruas e quero ver pessoas felizes! Quero casas arrumadas nas ruas e sorrisos nos rostos! Se quando eu sair daqui, puder ver uma cidade que valha a pena ser salva, então salvarei vocês! Senão, pedirei ao rei que nos mate a todos, pois não somos mais capazes de nenhum ato de bondade que mereça sobreviver!

Meus novos arautos estavam dispostos a matar e torturar a qualquer alma por mais pura que fosse para me agradar, retirariam alimento da boca de qualquer um para me satisfazer, mas, a ideia de serem obrigados a algum tipo de trabalho honesto ou de felicidade machucava fundo seus espíritos e os deixava muito confusos.

---- Agora vão! E espalhem meu desejo!

A partir deste ponto, fui deixado em paz. Com exceção das prostitutas que cuidavam de meus ferimentos e que as vezes me contavam histórias das refeições repartidas entre vizinhos e dos inacreditáveis laços que começavam a se formar entre as pessoas. Eu fechava os olhos e imaginava uma cidade se transformando, e a visão me trazia algo que era o mais próximo da sensação de felicidade que havia sentido nos últimos 15 anos.

No quinto dia levantei-me com ajuda de uma bengala e saí da escuridão da taberna para a odiável luz solar de uma cidade completamente nova. O medo da morte é um ótimo motivador para qualquer coisa, vi casas enfeitadas, flores nos corredores, as pessoas acenavam e sorriam para mim, mas, o que eu buscava era que acenassem umas para as outras. Não sei como pude me enganar com a esperança de que haveriam sorrisos sinceros, encontrei apenas aqueles sorrisos forçados tentando disfarçar o vazio que havia dentro do coração de cada um. Já lamentava a resposta que teria que dar ao rei quando encontrei uma criança, o único sorriso autentico entre todos, e provavelmente não sabia quem eu era e nem a importância de suas palavras para meus ouvidos.

---- O senhor tem fome? - Ela me disse oferecendo um pedaço sujo de pão – Minha mãe falou que devemos dividir o que nos sobra!

---- Não garotinha, hoje minha única fome é de sorrisos como o seu. Qual é o seu nome? Por que está sorrindo desta maneira?

---- Eu sou Vishnu. - Ela me disse - Estou feliz porque hoje não precisamos roubar comida. Hoje meu pai não bateu em mim.

---- Seu pai bate muito em você?

---- Não. Só quando eu choro de fome.

As pessoas na rua estavam mudas observando minha conversa com a menina, ninguém ousaria me atrapalhar, pareciam saber que o futuro de todos dependia apenas do que ela me dissesse.

---- E você chorou muito por causa da fome?

---- A vida toda – ela dizia isto sorrindo – mas agora as pessoas nos trazem pão, tanto que temos para levar para outros.

---- Esse pão sujo de terra? É disto que está falando? É isto que lhe faz sorrir assim?

---- É uma delícia senhor! - Ela respondeu me oferecendo novamente estendendo suas pequenas mãos para cima – Minha mãe falou que ele está sujo por que passou por muitas mãos e alimentou muita gente. Sobrou este pedaço, você não quer?

Era um pedaço grande, eu o parti e devolvi a metade, agora com a sujeira de mais um par de mão amaldiçoadas. Provei do meu pedaço, agradeci a menina e simplesmente voltei mastigando para a taberna, onde descobri que o rei havia adiantado o dia de sua visita. O encontrei sentado em minha cama imunda, ele me aguardava ao lado da princesa. Me surpreendeu que ela ainda usava minha capa, mesmo que esta parecesse estar muito mais limpa agora.

---- Mandei lavar esta sua capa! Minha criada esfregou-a até sangrarem as mãos, e seu fedor ainda não saiu dela! - A princesa parecia tão feliz em me rever quanto eu a ela.

---- O que fede nesta capa não é o suor de meu corpo, é a essência de minha alma, da vida que exalo.

---- Pois bem – o rei nos interrompeu – tenho uma pergunta para lhe fazer. Não posso esperar até amanhã!

---- Pois faça logo majestade. Estou ansioso por respondê-la!

---- Você prefere que eu mate você, arrancando-lhe uma parte do corpo a cada dia, amarrado no meio da cidade onde todas as pessoas possam lhe ver, ou prefere que eu mande matar cada um neste antro de podridão, homens, mulheres e crianças e lhe deixe viver com a escolha que fez?

---- Com todo o respeito majestade, você me pede pra escolher entre minha vida ou a das pessoas que odeio? - A princesa sorriu com minha pergunta talvez porque conhecia os termos da pergunta do rei desde o início – Ofereci minha capa à princesa, sua filha, para tentar salvá-la da dor que percebo estar lhe devorando por dentro. Achei que ainda houvesse alguma esperança, mas, agora vejo que me enganei. Assim como ela me enganou.

---- E qual a sua resposta – falou imperativa a princesa – O que vai ser?

---- Pois matem-me. - enquanto eu dizia as frases mais insensatas de minha vida, o rosto da pequena Vishnu mantinha-se estampado em minha mente - Sejam tão cruéis quanto julgarem necessário para satisfazer sua sede de sangue!

---- O que? - O rei parecia não acreditar – Vai se sacrificar por essas pessoas que não valem absolutamente nada? Por miseráveis que lhe odeiam? Pela escória que você mesmo odeia?

---- Não existe mais esperança para mim, mas, morrerei e levarei em minha boca o sabor de um iguaria que a realeza nunca poderá experimentar.

---- E o que seria?

---- Um pão sujo de terra! Um pão sujo de muitas mãos. Que alimentou muitas bocas e a única esperança que existe para este mundo onde piso.

Sem entender minha resposta, o sádico rei ordenou que me levassem ao centro da cidade onde fui rapidamente despido e amarrado em um velho caule de árvore morta. O sol estava forte, minha pele queimava como se minha alma já estivesse no inferno antes mesmo de morrer. Em certo momento os homens pararam de cultivar os grãos, as mulheres pararam de enfeitar as casas, as crianças pararam de brincar. Todos vieram para assistir a morte do mais odiado entre todos ser anunciada pelo rei em pessoa. O soldado explicou a todos os termos da aposta entre o rei e a princesa, explicou minha resposta e deixou a todos muito chocados com o que eu havia escolhido.

---- Hoje lhe arrancaremos uma mão! - O rei falou – Amanhã lhe arrancaremos o braço! Depois a outra mão e o outro braço! Quando não tiver mais braços serão os pés e pernas!. Ao fim da semana seu ultimo pedaço morrerá! Você tem mais sete dias para mudar de ideia! Quanto mais tempo demorar para mudar sua resposta, menos de você será poupado!

Sem exitar um soldado do rei cortou minha mão direita com a espada, outro prontificou-se em queimar meu pulso para que o sangramento não me matasse antes da hora planejada pelo soberano sádico.

O povo apenas me olhava em silêncio, eu podia ver em seus olhos o pavor de que eu simplesmente desejasse mudar de ideia, e aproveitando a atenção que recebia apenas disse a todos:

---- Continuem! Continuem! Cuidem de suas casas! Cuidem de seus vizinhos! Cuidem dos sorrisos de suas crianças!

Fui açoitado no peito após dizer o que disse, o sangue escorria apenas para causar medo nas pessoas que observavam, mas, não seria o suficiente para matar-me e tirar-me daquela situação.

Dia após dia repeti estas palavras, e cada vez que um membro era arrancado de meu corpo eu as dizia com mais convicção. A cada corte que o chicote causava em minha carne queimada, mais decido eu me tornava em continuar, e mais alto dizia e repetia minhas ordens. Apenas imaginando que elas seriam cumpridas eu suportava toda dor que sentia no corpo, na alma e nos membros que não existiam mais.

É incrível como uma cidade pode mudar em apenas duas semanas, as pessoas que vinham me trazer comida e bebida, antes me odiavam e agora lamentavam-se com sinceridade de minha situação. Não eram mais as mesmas que um dia desejaram minha morte, mas, ainda habitavam os mesmos corpos.

A semana havia passado e eu já não tinha mais braços ou pernas. Aguardava com ansiedade o momento em que o soldado do rei arrancaria minha cabeça, livrando-me finalmente do suplicio, imaginei que nada mais poderia me distrair, mas, em minha ultima noite a princesa me visitou secretamente. Haviam em minha volta muitos presentes do povo: Flores, pequenos objetos de artesanato usados para enfeitar as casas e um monte de outras coisas que se acumularam durante a semana, mas, que para a princesa não possuíam valor algum.

---- Por que lhe cercam com todo este lixo?

---- Este lixo é o tesouro que havia escondido dentro destas pessoas... - Respondi – Imagino que você nunca poderá saber o real valor dele, ou então do poder que ele possui!

---- Ah! E que poder seria este? - Ela disse com muito desdém.

---- O de transformar o mundo!

---- Ah sim! Me contaram o que você fez! Imagino que acredite mesmo que estas pessoas mudaram... - ela riu - Pessoas não mudam! Asseguro que após amanhã, tudo voltará a ser como era antes de você! Os homens largarão o trabalho e voltarão a roubar, as mulheres voltarão a buscar a própria desgraça e as crianças novamente ficarão famintas!

---- Não... Acho que a semente que plantei aqui no futuro se tornará uma floresta! Obviamente alguns voltarão mesmo a ser como antes, mas, não todos... Minha maior vingança foi devolver os sonhos aos que estavam sem nenhuma esperança... Amanhã vocês arrancarão minha cabeça, silenciarão minha voz e o sonho que vibra em meu peito, mas, o sonho que passei adiante viverá para sempre no coração dessas pessoas!

---- E de que isto lhe serve? Se você não desistir não terá mais olhos para ver as consequências!

Eu mantive-me calado. Só quem já sentiu o desespero causado pelo silêncio de alguém poderia perceber que o estava causando. A princesa se foi furiosa, blasfemava em voz alta. Nunca fiquei sabendo se ela ganhou ou perdeu a aposta que fez, nem qual sua intenção real em me visitar durante a noite.

No dia seguinte, enquanto o soldado do rei lia minha ultima sentença, pude ver a pequena Vishnu distribuindo seus pães sujos para saciar a fome de minha plateia e neste momento tive certeza de que valeu a pena todo o sacrifício que fiz por ela. Até aquele momento, mesmo com toda minha convicção tudo parecia confuso, mas, ver a criança sorrindo em frente a minha morte me fez finalmente entender minha própria missão. Quando o soldado levantou a espada e a multidão silenciou-se para olhar meu ultimo ato, pude dizer minhas ultimas palavras, enquanto rezava aos deuses, mesmo que tenham esquecido a tanto tempo de mim, que estas palavras fossem um dia compreendidas por alguém como a verdade que eram para mim.

---- Continuem! Continuem! Despedacem o pão como fizeram com meu corpo, e saibam, que apenas estando em pedaços o pão estará completo!

=NuNuNO==

(Eternamente grato à Vishnu pelo maravilhoso pedaço de pão que originou este conto)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 31/12/2013
Reeditado em 31/12/2013
Código do texto: T4631756
Classificação de conteúdo: seguro
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