O Xamã

As gargalhadas se confundiam com convulsões de tosse, enquanto a mesa amparava tanto uma bandeja com muita carne assada, quanto latinhas de cerveja, e de refrigerantes - estes para os evangélicos, entre a turma que me rodeava na rotineira sessão de piadas sempre que lá estamos, na residência da minha sogra, onde a maioria é crente. Esse era o cenário no primeiro dia, sábado, de hospedagem, juntamente com minha esposa, na casa.

No dia seguinte, domingo à noite, o ambiente era um extremo:

- E hoje, não vai ter piada não?

Pergunta Madalena, esposa do meu cunhado, que viera da rua de trás para a sessão daquela noite.

- Pelo jeito, parece que não.

Disse alguém, por detrás de mim, que me encontrava debruçado sobre meu ventre como quem não suporta o peso do próprio corpo, meio que distante e alheio ao que acontecia a minha volta, à meia-distância da roda de familiares, que esperava ansiosa pela primeira anedota.

Era umas sete da noite. O que intrigou a turma, posto que o meu normal de ir pra cama é sempre depois das onze ou meia-noite. Só que naquele dia eu acabara de chegar da Eco-vila da Mata, espaço naturista, onde me deixei trabalhar por um xamã. Ou pajé, como queira, que me deu o que pode ser considerado uma surra com o espiritual, me descarregando do que também pode se considerar de toda sorte de males que eu, sem jamais imaginar, carregava comigo. Na verdade, ainda saboreava a viajem que fiz durante o ritual, por toda a viagem de retorno, da Vila para Monte Gordo, até aquele momento, de depois dele, quando já em casa, na roda de familiares e até o instante em que fui posto na cama, às sete e pouquinho.

Eu que pensei que conhecia alguma coisa da Filosofia naturista, que vai muito mais alem do que um bando de gente desnuda se confraternizando, me surpreendi pois jamais imaginei adentrar numa tribo indígena, que é a primeira sensação que se têm quando se vê os preparativos, principalmente para uma consulta com seu líder espiritual; mas uma vez ali, me despi de quaisquer temor, me permiti e deu no que você logo saberá. - E sem tomar bebida apropriada alguma. E de repente me vi extasiado, depois de tomado por uma vontade irreprimível de chorar. Na verdade nem percebi o grau de transe do xamã, só sei que o meu êxtase foi tão intenso que nem minha esposa nem seus familiares, me reconheceram tamanho estado de letargia em que ainda me encontrava ao chegar em casa àquela hora, já noite.
 
- Vamos que vou lhe quebrar todo.

Disse o sujeito, que atende por Montanha (foto), ao se aproximar de mim, ainda estando do meu lado, antes mesmo de meus olhos o visualizarem, mas que minha mente, com a velocidade dum raio, processou o quebrar como a uma coisa muito longe de algo ruim. - A sugestão do atendimento à minha pessoa foi do Waldo, fundador do Espaço.

 
- Opa. Tô todo dentro.
 
Respondi, seguro. Agora avistando seu rosto, que se encontrava sobre o bestunto dum homem enorme, de riso fácil, aparentando algo em torno duns cinqüenta anos, de cabelos e barbas longos, olhar penetrante, e que logo saberia se tratar dum individuo que tinha sua vida estabilizada, um empresário, e profissional do meio comunicacional, que abandonara tudo para se entregar a vida espiritual, tal e qual fizeram muitos, no passado, como Gandhi e tantos outros.
 
Me perguntando em quais partes do corpo eu tinha sensibilidade, e depois de já sem minha camisa, o vi iniciar seu ritual. Que no inicio me deixou ainda mais tranqüilo por vê-lo invocar à Deus, antes de fazer qualquer outra coisa, como Àquele que criou a tudo, à todos, e à TODAS as coisas, enquanto apontava para a mata.
 
Até aí conseguia ver o que acontecia à minha volta. Mas a partir deste ponto, quando me mandou mentalizar meus ancestrais, fui entrando numa viajem que até então jamais conhecera, até o ápice dela, quando me induziu a um exercício respiratório, de inspiração e expiração, onde a cada inspirada percebia a invasão narinas adentro, do mais saboroso experimento de absorção de sabedoria e conhecimento acerca do potencial da minha própria pessoa e da Natureza sobre mim, enquanto, a cada expiração, percebia algo como se fosse a expulsão de lixo que até ali carregava dentro de mim, se posto ou se natural não sei, como num processo de descontaminação. Momento em que fui tomado pela vontade incontrolável de expressar o choro. Como alguém que se descobre refém dalgum mal que não sabia ser, ou ter. - O que cabe a outros uma refllexão acerca do que se é, ou pensa que seja.

Naquele momento o desejo de reservar em mim um espaço maior para suportar ou compreender os defeitos daqueles que me arrodeiam, também me arrebatou.


Os meus olhos, depois dos primeiros minutos de iniciado os trabalhos, estavam todo o tempo fechados, e me recusava a abri-los tamanho era o medo de acordar para uma realidade que não fosse aquela. A qual eu estava curtindo muito viver. Mas os abri. E a realidade estava lá. Mas sorrindo diferente. Talvez agora com uma verdade desnuda e não travestida pelos enganos dalgum mal. – Ele, que não sei se observou meu estado, ou se foi o único agente daquela vivencia, e que ainda que tenha alguma mácula não arredo o pé de garantir que o Universo tem um compromisso com sua existência, ainda que o próprio, quem sabe, não tenha esta consciência, se encontrava à minha esquerda, de onde veio aquela voz, me perguntando alguma coisa que não consegui entender bem, mas que supupus que fosse se eu estava bem, tendo respondido que sim, e muito bem.
 
- Você pode me deixar ali do lado de cá mesmo, que atravessamos, e você segue sem precisar dar essa volta toda nessa distancia.
 
Disse o amigo Miguel Gama, que - juntamente com um casal, o esposo que, acompanhado de outros presentes, me acomodara na cadeira-de-rodas ao chegarmos na Eco-vila, e a esposa, que me aliviara me molhando com água fria durante minha aflição pela falta de ar, que é o que me suaviza quando este fato ocorre -, pegava carona comigo até onde se encontrava seu carro.
 
Tranqüilo, e vendo o perigo iminente da travessia dos três em tão movimentada pista, e recusando a sugestão e preocupação com meu esforço, segui os quilômetros que nos separava, de tal ponto ao retorno, e muito naturalmente dei a volta, deixando os três em segurança para que embarcassem em seus veículos, e segui. Mas agora conversando com meus botões, e ainda com meus defeitos, mas com uma carga, quiçá, bem menor deles. 
 
E só em casa é que fui notar que a falta de ar, com a qual havia estado quando entrei naquele ambiente, e que me incomodara por toda a tarde, havia desaparecido durante o ritual.
 
Aqui abraçando o grande Berg, ou Montanha, como ele prefere...