“A Espada corta...”

 
Em um tempo que parece que não existiu, acompanhei uma pessoa amiga a uma velha benzedeira. Além de mezinheira, dizia-se que benzia de todos os males, tinha fama de adivinhadeira e sua casa vivia cheia de pessoas que, pelo sim e pelo não, davam crédito as suas habilidades.
A pessoa se dirigiu ao interior da casa.Fiquei na varanda, aproveitando o fim da tarde e entabulando uma conversa agradável com o filho da dona da casa, um escultor de artefatos de madeira muitos interessantes. Santos e bichos eram seu forte e ele, sem parar o trabalho, ia falando de obras suas espalhadas por vários lugares do estado e do país.
Mais ou menos meia hora depois, a senhora chegou à varanda, acompanhada da pessoa que fora procura-la e fomos apresentadas. A matriarca beirava uns setenta anos, mas com muita energia, sorridente e amável. Abraçou-me e perguntou por que não havia entrado junto. Respondi que apenas acompanhara a pessoa, mas gostara muito de conhecer o trabalho do seu filho e saber por ele do trabalho que ela realizava junto a sua comunidade.
A senhora olhou bem nos meus olhos: -“Pena que você não acredite, minha filha, mas havia por aqui gente querendo falar com você...”
-Mamãe, não assuste a moça, com as suas conversas...
Garanti ao rapaz que não me assustava, apenas não tinha o hábito de tratar de assuntos que não entendia - aquele era um deles! - que respeitava profundamente todas as crenças, pois todas eram manifestações do divino e da fé de cada um. Quem sabe outro dia...
A senhora pediu para esperar e entrou na casa. Voltou com um frasco de alfazema e colocou em minhas mãos. “Minha filha, mesmo que não acredite vez ou outra, após um banho, tome um “banho de cheiro”. A cobiça e a inveja são energias muito negativas mas muito presentes entre nós e você é alvo delas com frequência. Você é muito abençoada, tem muita proteção mas não custa ajudar, não é ?"
Ri e agradeci aquela senhora que não me conhecia mas me tratava com uma intimidade e um carinho comoventes. Prometi que qualquer dia apareceria para um café, para ver os trabalhos do artista e para uma conversa sobre rezas e mezinhas, que tanto me agradava ouvir sobre, pois lembrava minha avó tão querida, que já se fora desse plano. A senhora me abraçou e disse que iria esperar mesmo por minha visita.
Na rua, quando já entrava no carro, a senhora falou: “Desculpe, mas eu preciso lhe dizer que vi muito choro e tristeza em sua vida.” E ao reparar na sombra que se formou em meu olhar continuou, com doçura: “Não se impressione, minha filha. Às vezes a espada corta...”
Perguntei o que significava aquela expressão e a senhora respondeu: “Os acontecimentos bons ou ruins estão na linha da nossa vida, no nosso destino, mas há pessoas, situações ou outros acontecimentos que aparecem e mudam nossa rota, então coisas que iriam acontecer não acontecerão mais e assim dizemos que a espada da sorte cortou aquilo, entendeu ?”
Disse que sim, agradeci e fui embora mas guardei para sempre a explicação daquela senhora de olhar tão doce e sábio, que pareceu ler minha alma e, pela vida a fora, entendi que quando se planeja algo importante e um acontecimento, uma palavra, um gesto de alguém desfaz nossos planos, nos faz repensar o rumo de nossas vidas, entender nossas escolhas e até abrir mão de algumas delas em função do nosso próprio bem estar, da nossa alegria e paz do nosso espírito. Portanto, não se deve lamentar mas aceitar e , na medida do possível, compreender a dinâmica da vida.
Alguns meses depois perdi um irmão de dezenove anos em um trágico episódio. Nunca fui tomar o café prometido, mas desde então jamais duvidei que “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.*”
“A espada corta...” e que bom quando corta e prepara nosso coração para o que há de vir, quando corta e nos livra do mal, da tristeza e da dor, inevitáveis sofrimentos da vida de todo ser. Que bom quando corta e coloca na trajetória das nossas vidas pessoas e acontecimentos felizes, por merecimento, dádiva. Que bom quando a gente sente que entendeu o sinal.
Por que me lembrei dessa história ? Não sei... Talvez por desejar que a minha espada da sorte se mantenha afiada em mais um ano que se inicia.
 
*Frase atribuída a William Shakespeare.