images?q=tbn:ANd9GcQFYze7FeKt2EUsi1yJ284_1UWtJB5Gm2OAoKUq_LAhL-MumoiE
 
A FUGITIVA
 

 Aos quatro anos ela se rebela. Não aguenta mais a tirania da mãe: escovar dente, pentear cabelo, guardar brinquedo! E o enjoamento do pai desligando a tevê no melhor da festa? Sem alternativa decide: vai fugir! Numa convicção espantosa anuncia:
 
— Tô indo embora de casa!
 
— Quê isso agora? —  a mãe, de olho arregalado, não pode acreditar — Era só o que faltava, dona Ana Lara!
 
O pai, já mais tranquilo, nem se dá ao trabalho de tirar os olhos do futebol. Galo Forte Vingador não tá lá essas coisas ultimamente, não dá pra perder um só lance! Com um gesto significativo de mão  e a troca de um olhar rápido e cúmplice com a mulher ele sinaliza: deixa pra lá os fricotes da menina.
 
 Mas, Ana Lara é pessoa de fibra. Falou tá falado. Cata a Barbie e vai jogando na sacola plástica. Vê lá se vai deixar seus tesouros pra trás! Trata de catar também o Ken. Vai que a filha sinta saudade do namorado bonitão e fique chata querendo voltar! Nem pensar! Passo firme, ganha o mundo. Sem olhar pra trás, atravessa a rua. Do outro lado, dá uma última espiadinha pra conferir a situação. Uai, esquisito! Ninguém tá vindo atrás! Pela fresta da cortina a mãe chora de rir...  
 
De repente, a fugitiva hesita: que caminho seguir? Pro lado de cá ou pro lado de lá? Puxa, o mundo é tão cheio de saídas! A cabeça dá um nó. Confere a Barbie e o Ken na sacola. Tá tudo bem. Há de encontrar um lugar pra família inteira morar! Mas enquanto não se decide, melhor ficar mesmo mais perto de casa. Dá meia-volta e retorna ressabiada rente ao muro. Por detrás da cortina, a mãe, e agora o pai — já superando a derrota do Atlético — não perdem um só movimento da pequena rebelde.  
 
Ana Lara é um poço de dúvidas! O que fazer? A casa fechada, sem sinal de vida. Cadê o pai e a mãe, desesperados, a sua procura? Pra controlar a situação se esconde na curvinha do muro da casa da frente. Ali mora Daiana, sua melhor amiga, mas ela não vai chamar ninguém nesta hora de extrema solidão! Puxa, os pais além de chatos são uns desalmados! Ninguém tá ligando que se vá para sempre!
 
Perna cansada, mão suada de tanto segurar a sacola da Barbie, Aninha senta-se no chão. A noite há de encontrá-la ali, naquela amargura sem fim. Como é triste ser abandonada! Mundo cruel! Igualzinho ao Patinho Feio do filminho na escola! Ô vida! Ah, mas o dia em que virar um lindo cisne prateado todos vão se arrepender!
 
Xi! O mundo tá ficando preto, tudo escuro! Ana Lara se levanta assustada. Pega a sacola com os filhos, atravessa a rua e toca a campainha de casa. O pai e a mãe, de propósito, demoram pra abrir a porta. Numa indiferença calculada, sem perder a pose, Aninha  ruma em direção ao quarto. A mãe provoca:
 
— Uai, desistiu  de fugir?
 
Ela não dá a menor bola. Finge que não entendeu a ironia e  antes de fechar a porta, altiva e inabalável responde:

— Desisti nada! Só vou esperar o dia ficar branco, tá?