Grão de areia com fuligem

Grão de areia com fuligem





Me arrastavam, dois ou três sujeitos, talvez quatro, arrastar não é bem o termo, me conduziam, segurando-me pelos braços e cotovelos. Na maior parte do percurso meus pés mal tocavam o chão. Primeiro passamos por uma mulher de tranças, que, ao me ver, disse com apatia:

- Você me deu um presente... Nunca vi ninguém dar isso pra ninguém. Humpf. E eu não fui capaz de te dizer ao menos "muito obrigada". Além de não agradecer, ainda fui grosseira e lhe dei as costas. E o pior é que, além desse pensamento não me largar, não concebo a hipótese de ensaiar sequer um pedido de desculpas. Será ódio, o que eu sinto?

Uma nuvem de letrinhas pairou entre nós, expressando que amigos não sentem ódio, a menos que nunca tenha sido uma amizade. Uma verdadeira amizade tramita na gratidão.

Os homens sorriram, são fortes, só os fortes sorriem desse modo, me sentia sonolento, ora com a vista turva, ora com um cansaço milenar, tinha mesmo que ser conduzido, sem saber pra onde, passávamos por espaços amplos com passos ligeiros. Encontramos outra mulher no trajeto. Tinha olhos amargurados. Me mediu de cima abaixo e disse com aspereza:

- Naquele evento coberto de tristeza eu falei, na frente dos que te são caros, que você não deveria estar lá, que seus trajes desalinhados e seu semblante de dor, que eu não conseguia ver, condiziam mais com uma sarjeta do que com prestar homenagem a uma relação que você nunca conseguiu resgatar. Você se calou. Essa ideia tem me perseguido. O pior veio depois....Talvez, pra mostrar que você foi um incompetente a vida inteira.


- Minha marca registrada... - refleti em voz alta, como uma flauta ofegante, achando aquela conversa longa demais. Pedi para os sujeitos se afastarem um pouco. Eles me alertaram que eram a minha escolta. Minha proteção. Ainda assim pedi que se afastassem, cheguei a trovejar, alegando que conseguia firmar-me sobre meus próprios pés. Eles se afastaram, sorrindo, como sorriem aqueles que sabem o que vem a seguir.

Com o fôlego curto, disse para a mulher de olhos frios:

- Há algo que você precisa saber, algo que vai te dar paz. Espero que você entenda. Eu fracassei, percebe? Em todas as áreas da minha vida. Fracassei como pai, como marido, como profissional, o que você nomear, na minha existência, a palavra fracasso estará lá. Satisfeita? Agora você vai ter paz. Não vai mais precisar se afligir para provar a sua grandeza. Especialmente, à custa da minha insignificância. Você venceu. E, veja, nada disso precisa ser um drama. A ausência de medalhas no meu peito significa, por outro lado, espaço livre para novas conquistas. A gente sempre aprende alguma coisa... Por hora, não passo de um fantasma errante, e, ainda por cima, um fantasma com medo de morrer. Posso ir, agora?

Minhas pernas bambearam, eu estava prestes a cair. Eles me seguraram e deslizamos numa trilha sinuosa que não desembocava num local e sim numa data. Havia, no ar, uma festividade tênue como asas de borboleta.
Uma senhora de idade avançada falou através de um timbre muito vivaz:

- Se não tem suco, tomo água, aprendi a ser feliz com o que tenho.

Olhei para eles, como que indagando. Me explicaram que a única coisa capaz de saciar de fato chama-se "afeto".

Pensei que teria que pensar nisso depois. Mas foi um pensar fugidio.

Os homens prosseguiram, meus pés mal tocando o chão, sinto uma brisa, suave, suave brisa, antes de chegarmos em algo que sugeria um alvorecer um rapaz alto, muito alto, surgiu com alegria nos olhos para me dizer: você foi importante na minha vida... Me despedi dele com um gesto de quem já sabia disso, mas que sentiu imenso regozijo em ouvir tal declaração. E você idem, pensei, sem tempo de verbalizar, eles andavam depressa e sorriam, como sorriem os plenos. Enfim chegamos na alvorada. Havia plantas ao redor e árvores ao fundo.

Me largaram num banco almofadado.

- O que foi tudo isso? - indaguei.

- Oh, foi... - exprimiu um deles - tudo isso foi temporário. Absolutamente tudo é temporário.

Os outros assentiram.

- Mas afinal, quem são vocês?

- Oh, você não compreenderia. Vivemos na linha do horizonte e guardamos pessoas como você para que um dia você guarde pessoas como você.

- Como eu?

- Sim, como você - um grão de areia com fuligem.
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 07/01/2014
Reeditado em 08/05/2021
Código do texto: T4639387
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