E o mundo ficou triste para sempre

(Esta crônica foi claramente inspirada após a releitura de “Cem anos de solidão”, de Gabriel Garcia Marquez) e seu título aparece em alguma página do mesmo)
Imagem: Antonio Ferreira da Silva.

Havia apenas a luz de Aldebarã no céu, na solitária rua das sumairas, sem número, no centro torto da cidade, local onde se erguia o velho casarão. Também diziam, que naquele lugar habitavam as pessoas mais felizes do mundo, mas que todos também sempre souberam serem as pessoas mais tristes do mundo.
A casa velha era habitada por mulheres e homens das mais diversas cores, idades, ocupações, vícios e virtudes.
Aldebarã já queria cair para o outro lado do céu, quando Agenor levantou-se e foi até a grande cozinha no final do corredor, não sem antes dar uma pequena batida na caixa de madeira rosada que ficava sempre trancada, com apenas duas aberturas; uma para entrar um pouco de luz do sol e outra, pouco maior, para alimento; dentro o pequeno réptil coral passava sua triste vida, Agenor deixava a caixa sempre debaixo da cama, pensava:
- Seu eu um dia não aguentar mais a tristeza eu a coloco no colo. Não ficaria famoso como certa rainha, mas a se acreditar no sujeito que lhe vendeu a cobrinha; teria uma morte rápida, sem dor, coisa que parece ser muito desejada pelos humanos; ninguém quer a dor, como se ela não nos acompanhasse desde sempre.
O velho Agenor saiu caminhando, queria peidar, mas não fez, não queria acordar os que ficaram, voltou à cozinha. No caminho encontrou com o fantasma do velho mascate Alberto, morrido havia muitos anos, quase na aurora do mundo e que não conseguia ir embora, nem para o céu, nem para o inferno, nem para lugar algum; ninguém o queria nesses sítios de ressuscitação, expiação ou reencarnação. Dizem que tinha morrido ao comer a carne da teiniaguá e isso na aurora do mundo era um crime muito sério; pois quando o mundo não era bem o mundo, ainda não havia leis escritas, não estava escrito em nenhum lugar que não se podia comer a carne da teiniaguá, então Alberto comeu, morreu no mesmo instante e sua alma, alguém condenou a permanecer no mesmo local, sem poder ir para lugar algum, nesse tempo a tristeza já começava a olhar para o mundo.
- Assustei você?
Agenor olhou para o lado e com uma surpreendente doçura no olhar disse:
- Não, você não é fantasma de assustar, se quer assustar, deveria colocar algumas correntes nas mãos, faria algum efeito especial, além do que, vejo você todas as noites.
- Pode ser, mas não gosto disso.
- Das correntes?
- Não, de assustar, não nasci para isso.
- Não nasceu para isso?
- Melhor dizendo, não morri para isso.
- Então vamos até a cozinha, vou fazer café e tomar cachaça.
- Não bebo.
- Você é o único fantasma que conheço e logo um abstêmio.
Sentaram-se na cozinha. Agenor fez café e o tomou com cachaça. Da pequena janela, o vento trouxe de algum lugar do céu um pequeno raio de luar, que se apressou em sair, dizendo:
- Não aguento tanta tristeza. E sumiu-se, como apenas um raio de luar sabe fazer.
- Agenor, disse Alberto. – As máquinas ainda estão lá fora?
- Sim, logo, logo começam a fazer seu trabalho.
A casa estava condenada, todos no velho centro sabiam, todos na casa sabiam. Teriam que ir embora. A maioria já tinha ido, restavam apenas Agenor, Alberto o fantasma, a cobrinha, a feiticeira Consuelo, que jamais envelhecia, Aldair, alfaiate de profissão, que não tinham lugar para ir.
O pequeno raio de luar pensou em voltar, mas desistiu da ideia, era infinitamente mais interessante ficar vagando pelo mundo, batendo ali, refletindo acolá, para o pequeno raio de luar o mundo era apenas um pasto. Para os cinco últimos moradores da casa velha; o mundo, com suas cores, artimanhas, métodos e incertezas se resumia a seus próprios pensamentos e a casa.
Faltava apenas um quarto para a terceira hora, quando Consuelo, com olhar de satisfação acordou, Aldair dormia ao lado, dormia sorrindo sonho bom. Consuelo, ouvindo cochichos chamou Aldair.
- Acorde, vamos nos juntar aos outros. E foram até a cozinha.
- Buenas, então é hoje?
- Sim, disse Agenor, não passa de hoje.
- Não temos lugar para ir, vamos ficar aqui?
- Não podemos ficar e está claro que não temos aonde, nem onde ir.
Consuelo arregalou os olhos:
- Posso fazer magia, fazer todos desaparecerem, nasci numa terra onde as sucuris batem nos barcos para derrubar gentes na água, onde há rios sem fim, onde os bichos ainda falam, não tenho medo de máquinas e homens.
- Não adianta, se estes que estão aí desaparecerem, virão outros. Eles são muitos, não sabem voar, mas são muitos e nem nós sabemos voar.
- Mas podemos, disse Aldair de seu canto.
- Podemos?
- Possuo entre minhas heranças arábicas um tapete que voa, é o último, mas ainda voa.
- Gostaria de ir para a terra de Consuelo, falou Alberto. Gostaria de falar com os bichos, mas eu sou o único que está preso aqui para sempre.
- Comeu carne de teiniaguá no começo do mundo? Perguntou Consuelo.
- Sim, deste lugar já vi a filosofia, os aquedutos, o nascimento da cruz, as caravelas, todas as guerras, todas as pestes, não posso sair daqui.
- Não sou feiticeira à-toa, posso tirar você deste encanto, vou até o quarto buscar a poção.
Consuelo volta e entrega a Alberto um pequeno frasco com um liquido azul.
- Beba Alberto, beba tudo, é minha última magia, para o lugar que vamos eu não sou feiticeira.
- Vamos? Balbuciou Agenor.
- Não podemos ficar e neste mundo não temos lugar para ir, vamos embora, na minha terra há lugar para todos.
- Eu prefiro morrer Consuelo, chorou Agenor.
- Não temos escolha e você não vai morrer, a propósito a sua coralzinha não é das venenosas.
- Não?
- Não, já disse, não sou feiticeira à-toa.
- Vou buscar minha cobra.
- Vou buscar meu tapete.
Subiram até o telhado e todos se acomodaram, sentados no tapete: A feiticeira Consuelo, que jamais envelhecia; Alberto o fantasma desencantado; a cobrinha que afinal não era venenosa; Agenor, que não ia morrer e Aldair, alfaiate de profissão.
Faltava pouco para o sol nascer e o pequeno raio de luar voltou e guiou aqueles seres tristes para a terra em que as sucuris batem nos barcos e os animais ainda falam.
Lá embaixo as máquinas avançavam para a casa velha e todos souberam que o mundo tinha ficado mais triste.