Pão Doce    


                    Não há mais as pitangas do tempo de minha mãe. Nem tão pouco as carambolas do meu tempo. Penso nisso porque o refrigerante que eu tomei aos 14 anos também não existe mais. Foi o meu primeiro momento de glória. No relógio do botequim já eram 23,45 h. Quase meia-noite.
                   Evidente que meus leitores já querem saber deste fato. Calma, contarei tudo.
                   Tudo começou quando cheguei do colégio ginasial, quarto ano, e disse para meu pai: - “Papai, o César Oiticica (irmão do Hélio Oiticica, que se tornou mais tarde célebre artista, o inventor do “parancolé”) não aceitou ser o orador da turma, no encerramento do nosso ginasial”. Espantei-me com a resposta imediata do velho Moacyr. – “Diga no colégio que você quer ser o orador.”  Bem, naquela época, ele não era velho, estava somente com 30 anos. Apesar de bem humorado, ele me exigia total respeito. Vou contar uma história rápida: um belo dia fui almoçar na casa do Luiz Affonso, filho de psicanalista. Portanto, já era dono de uma educação libertária. E com divertido assombro vejo meu amigo se dirigir ao pai. Disse ele: - “Artur, me passa o pão”.  Os leitores, claro, já advinham o que fiz ao chegar em minha casa.  Exatamente. Na primeira ocasião, jantando um café com leite, pão e manteiga (foi um período de pobreza lá em casa e o jantar era esse, costume do Norte), gritei: - “ Moacyr, passa a manteiga” Deus, só não apanhei porque ele era contra qualquer tipo de violência. Mas a descompostura foi geral. – “seu moleque, me respeite, não me repita mais isso, etc. etc.” Nunca mais chamei papai de Moacyr e, confesso, estou me esbaldando de chamá-lo de Moacyr aqui nesta crônica.
                   Mas quero contar sobre o refrigerante. De julho a dezembro ensaiava de frente para o Moacyr, quer dizer, de frente para o papai, o discurso que ele fizera. Todo dia era aquele ritual. Gestos, entonação, paradas estratégicas, voz alta, voz baixa, etc., etc.
                   No encerramento do ginásio (minha mãe não foi porque estava doente), meu pai na primeira fila saboreando o discurso do filho. Consegui ler o discurso com tanta desenvoltura que, soube depois, a Direção do Colégio Rezende, da rua Bambina, no Rio de Janeiro, considerou o melhor discurso  de todos os tempos do Colégio.
                   Na volta, ao chegarmos no edifício onde morávamos, o bar que ficava em baixo do prédio ainda estava aberto. E meu pai exultante me convidou para tomar uma refrigerante em comemoração ao grande feito. Eu então pedi um grapete, que não tinha. Pedi um crush bem gelado. O crush era um refrigerante de gosto de laranja. Papai, que era um simples, de uma humildade sábia, deu-se por satisfeito. E essa foi a minha grande comemoração.
                   O ser humano é complicadíssimo, penso que este fato me marcou tanto que não consigo gostar de grandes festas. Aquelas que têm canapés, camarões fritos, bebidas estrangeiras (abro exceção para os ponches). Podem não acreditar, mas a comemoração do meu primeiro casamento, realizado só no civil, em Copacabana, foi de uma singeleza franciscana. Dei a ideia: - vamos na Colombo, na Nossa Senhora de Copacabana, esquina com Barão de Ipanema, tomar um chá com torradas Petrópolis. E foi assim. Eu, a esposa e os respectivos genitores e mais a minha irmã Naná. Eu, na minha simplicidade ou timidez, sei lá, me sentia como se estivesse com a tanga do Ghandi. E meu pai, com as sandálias da humildade.
                   Mantive a pose e me abstive de pedir um pão doce com um crush bem gelado.