Perdi 88 vizinhos

Quando eu era criança, ouvia falar do doutor Aragão Villar; depois, em minhas andanças a pé para chegar ao colégio, via o doutor subir de automóvel para o seu hospital psiquiátrico. Me vem à memória um homem claro e forte, que, inclusive, alguns anos depois, me assinaria um atestado lá no Palácio da Saúde, um atestado médico, me dizendo apto para algum trabalho, creio...

Verdade é que o hospital ficava (digo ficava, porque foi desativado) bem perto de minha casa e quando me pediam uma referência de endereço, eu cravava sempre: próximo ao hospital Aragão Villar. Muitos anos depois, minha vida e a do médico se cruzariam em momento de muita tristeza. Acompanhando meu pai, hospitalizado na antiga Cotrel, fiquei sabendo que lá também se internara, em estado grave, o doutor Aragão, e foi em 13 de agosto de 1992, que ambos – o ferroviário, exímio telegrafista, e o médico psiquiatra – mudaram seu jeito de existir.

Anos e anos fui acompanhando meio a distância aquele hospital, em cujos fundos havia uma pequena quadra onde a garotada exibia seu futebol de salão. Lembro-me de que, no início, o hospital era pequeno, depois foi ampliado, ganhando um novo e grande prédio à frente do original.

Sempre impliquei com uma coisa. O Aragão não tinha pórtico, não tinha sequer uma portaria e um portão. Para mim, a vida toda pensei, o hospital merecia um belo portão em cima do qual se exibiria o nome “Hospital Aragão Villar”. Sempre comentava com familiares que um dia o portão e o pórtico seriam inaugurados... Ficaria bonito, seria uma referência e facilitaria a quem não conhecesse nossa simples região encontrar aquela casa de orates, como dizia o nosso genial Machado de Assis.

Com a falta de maior segurança, de vez em quando, sabia-se de alguns fugitivos que corriam pelo bairro, mas eram facilmente recapturados pelos zelosos funcionários. Na verdade, desconheço casos de loucos perigosos que tenham, nesses longos anos do Aragão, colocado em risco a vida de quem quer que seja. É certo que os houve, mas é certo também que a sociedade fora resguardada, mesmo não havendo o reclamado portão. O prédio está lá... Murado nas laterais, longo pátio na frente, com acesso livre... Bela contradição... Uma real loucura!

Me vêm aqui à lembrança o tempo em que os doentes caminhavam pelo bairro, sempre acompanhados. Depois, essa prática se perdeu, e eles passaram a tomar sol pela manhã e à tarde no entorno do prédio, sempre “vigiados” por um funcionário, que estendia uma corda, onde seria o portão. Um vão, uma corda e lá adiante gente triste ou gente feliz, à sua maneira, recebendo visitas às quintas e aos domingos, mas o José Maria, responsável pela ordem, abria exceções e, mesmo quando não era dia de visita, permitia a entrada de quem quisesse conversar, ajudar, levar um café ou rezar com os doentes.

Durante algumas vezes ali estive, pagando um café, conversando um cadinho e refletindo sobre nossa enorme pequenez. Durante algumas vezes, eu, que vivi das palavras, andei recitando para um ou outro um poema sabido de cor. Durante algumas vezes, abri o bolso e deixei para um ou outro um lenitivo à sofridão. Ali, mais recentemente, vi o Chico, negro, que nunca se furtou a pedir... O Ismar, claro, magro, de andar rápido atrás de um dinheirinho; ajudei-os no que pude... Um realzinho fazia-lhes a festa. Vi alguns que se despiam e assim andavam, indiferentes... Vi os que já não falavam... Vi os que se repetiam... Vi os que sorriam sem saber por quê... Vi um que colecionava papéis, deles não se afastava e, quando era dado o toque de recolher, ele chegava por último, com a papelada. Talvez tivesse um sonho: ser professor, ser escritor... Há muitos anos, vi um cujo comportamento me intrigava: o Piraúba rodava horas e horas em torno do prédio do hospital, sem parar, sem conversar. Ali, indiferente a todos, fazia sua ginástica e, em círculo, talvez buscasse seu destino, talvez refletisse confusamente sobre a vida ou será que não pensava em nada? É possível não pensar em nada? O nada existe? Que loucura!... Com as internas, exceção de uma antiga conhecida que lá não perdera o hábito de pedir dinheiro emprestado, não mantive conversação...

Não conheço a história do doutor Aragão, não sei onde se formou, se ficou muito rico, se fundou o hospital pleno daquele juramento de Hipócrates... Não sei... Acredito que tivesse sonhos, o de curar, o de minimizar sofrimentos. Acredito até que, possivelmente com mais erros do que acertos, o hospital complete sua história com uma boa página de serviços prestados.

Vi ali gente humilde, gente pobre, gente sofrida, gente que talvez nem família tenha mais.

Já sabíamos que havia o impedimento e que o hospital agonizava. Mesmo assim, a notícia surpreendeu. No fundo, como quando se espera a recuperação de um doente em estado grave, esperávamos o milagre da recuperação e o Aragão ressuscitado e bem limpo, e bem bonito, de cara nova para seus doentes, para seus colaboradores.

Não foi possível. Perdi os vizinhos, que foram para o Esperança. O Aragão fechou sem inaugurar o portão.