Propaganda enganosa

PROPAGANDA ENGANOSA

Eu te peço: não se apaixone por mim. Em geral, eu engano as pessoas, não sou como você imagina. Passo a imagem errada, troco as bolas, visto personagens. Sou conto do vigário, alvo emocional caduco, porto esculhambado. Não sou o que você está pensando, seja uma ideia boa ou ruim.

Não, eu não sou legal, principalmente antes das dez da manhã. Sou páreo duro para a acidez do limão, intragável no quesito “simpatia matinal”. Meu bom dia é quase um muxoxo e só dou quando me distraio de mim. Preciso de um café preto fumegante, um pão de forma sem a bordinha e meu requeijão cremoso. Sem eles, o que raramente tem liga, desanda.

Parece, mas não sou cuidadosa. Sou uma estabanada convicta e de carteirinha. Quebro tudo, dou topadas, copos e pratos voam das minhas mãos, arranho mesas polidas, mancho tecidos. Para mim, coisas são coisas e não acredite que vou achar lindo caixas etiquetadas, gavetas com objetos separados por cor e lista de pendências. Sou um furacão desastrado, com coordenação motora equivalente à de uma criança de dois anos.

Está enganado se pensa que eu sou inteligente. Sou apenas curiosa e interessada. Procuro livros indicados em novelas, músicas que escuto no elevador e autoria da obra de arte pendurada na parede do consultório do meu dentista. Descubro e depois de cinco minutos, esqueço. Gosto de skate, Mondrian, Martha Medeiros e um pouco da genialidade de André Piva. Mas não me peça para explicar nada. Não tenho boa memória e minha articulação com palavras ditas é péssima.

Para endossar: detesto futebol e cerveja. Praia, nem pensar. Carro? Só se for para dirigir: peças, rebimbocas das parafusetas, virabrequins não me seduzem. MMA? Talvez, mas não garanto. Não passo recibo, nem dou ataques de ciúmes, de pelanca ou de medo de insetos. Não fuxico celulares, carteiras ou colarinhos. Cada um com seu cada um e não deixe o seu solto.

Desista: eu não sou fã de pompa, glitter e glamour. Detesto restaurantes com milhares de talheres e guardanapo no colo, onde tem de ser falar baixo e se deixar embalar pelo charme de taças tilintando. Sou mais um churrasco na laje, com direito a banho de mangueira e pagode de dez anos atrás. Presentes caros não enchem meus olhos. Momentos inesquecíveis é que preenchem meu coração. Esqueça roupas e sapatos de grife, embebidos em perfumes caros. Meu calcanhar de Aquiles são brechós, ponta de estoque, o famoso vintage. Joias? Nem pensar! Perco anéis e brincos com a mesma facilidade que esqueço as chaves de casa.

Sou desinteressante, desimportante a olho nu, gosto do que ninguém gosta, me atrai o que muita gente repele. Não, querido. Eu só pareço um pacote completo, mas sou um quebra-cabeças defeituoso de fábrica, com várias peças em falta. Não leve gato por lebre, não creia em meus olhos seminipônicos com ascendente em Escorpião.

Não, eu te peço. Se quiser se apaixonar, o faça pelo que sou por dentro, debaixo dessa casca grossa de um metro e cinquenta e oito e pés trinta e quatro. Ame a minha construção, abrace a paixão que tenho pela vida, enfeite meu silêncio. Há quilômetros não percorridos em minha alma, momentos nunca vividos, saudades nunca inauguradas.

Se quiser, pode vir, mas chegue na ponta dos pés. No manual não consta, mas não suporto barulho.

ARYANE SILVA
Enviado por ARYANE SILVA em 21/01/2014
Código do texto: T4658979
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