MOMENTO PISCÃO III - TRAVESSIA DO RIO CANDEIAS
Era um domingo chuvoso, normalmente a chuva vinha sempre à tarde, mas aquele domingo amanheceu com chuva. No sábado tínhamos programado conhecer a cachoeira de Samuel. Iríamos logo depois do almoço, pois almoçar fora do acampamento, quaisquer comidas seriam “Jesus me Chama”. Almoçamos cedo e mesmo com tempo ruim partimos para a aventura. Por que seria aventura? A van C-14 estava sem freio de mão, direção com jogo, jogo nas rodas, passava-se num buraco e a marcha escapava, etc. Era um “ sucatão”.
- Peguem a estrada e prestem atenção que há uma placa indicando o local, fica mais ou menos a uns cinqüenta quilômetros, disseram-nos.
O Garcia pegou a direção e saímos cortando a selva numa “picada” (a estrada era tão ruim que estava mais para picada que estrada) com muita lama. Já tínhamos andado uma boa distância, talvez a metade do caminho, quando começamos a descer e deparamos com o Rio Candeias, com seu volume bastante elevado. Tínhamos que atravessar com uma balsa, isso os “muy amigos” não nos tinham informado. A balsa era pequena, curta e estreita. Não cabiam dois caminhões. Um caminhão e dois automóveis era a sua capacidade. Ficava presa a um cabo de aço e era rebocada por um barquinho com um motor tão fraco e cansado que mal explodia. Colocamos o carro na balsa, assim que ela chegou. Até aí sem problemas, éramos únicos. Pedimos para por calços nas quatro rodas. Do outro lado do rio, a estrada continuava numa tremenda subida, mas não tivemos problemas. O Garcia subiu sem muita dificuldade. Quando chegamos ao topo, paramos para olhar para trás. Aí caiu a ficha, era um desfiladeiro. Seguimos em frente pela estrada barrenta, o interessante é que o barro estava na nossa mão de direção, então o Garcia “esperto” passou para a mão contrária. Cruzamos com um caminhão parado carregado de bois, estava enguiçado, pois estava com o capô aberto. Tudo ia indo muito bem até que em uma das curvas, demos o primeiro “piscão”, quase chocamos com um caminhão. Ambos acabaram saindo da estrada, deslizamos na lama fomos parar no capinzal. O caminhão nem parou, nem xingou, para ele aquilo parecia nada representar. O meu colega amarelou e deu uma tremenda bronca no Garcia. O Garcia então passou a direção para mim. Quando chegamos à entrada para a cachoeira, começou a chover mais forte. Era um tremendo declive. Sorte que o terreno era ferroso e formava uma camada dura na superfície. Vimos que não seria difícil descer. Chegamos até a margem do rio, mas o que vimos foi muita corredeira. Talvez se o nível do rio não estivesse tão elevado, veríamos a tal cachoeira ou corredeira, mas valeu, vimos algumas pessoas pescando nos remansos e fisgando alguns bonitos peixes da família dos bagres. Ficamos frustrados e resolvemos voltar.
Quando começamos a subir, o carro começou a patinar no terreno liso. O aclive era longo, o carro caiu com a roda direita numa valeta lateral formada pela erosão. Mas aquilo que parecia ser uma grande dificuldade, foi benéfico, pois o carro patinou menos e com bastante peso do lado esquerdo, conseguimos chegar até a estrada, agora com bastante poças. Passamos pelo caminhão dos bois que estava transferindo a carga para o caminhão que quase chocamos na ida. Próximo da balsa, antes da descida, havia fila. Quando chegou nossa vez, ficamos bem na frente, mas o balseiro pediu para fossemos mais à frente.
- Por quê?
Perguntei apavorado, pois o carro estava sem freio de mão e uma parte da frente do motor iria ficar fora da balsa. O carro seguinte era pequeno, mas não era ele que vinha para trás da van. Perguntei ao balseiro.
- Por que aquele caminhão carregado de bois vem aí, disse o balseiro. Ele tem preferência, porque os bois têm que chegar vivos ao matadouro. Os bois já estão sem comer há um bom muito tempo, só bebendo água e um pouco de capim.
- Por que não nos avisaram?
- Vocês já estavam embarcados quando eles chegaram e não há como voltar.
- Estamos sem freio de mão e a marcha escapa.
Por mais que protestássemos, de nada adiantou. Engatei a ré e fiquei em pé no estribo com a porta aberta segurando a alavanca do câmbio, sorte que ficava junto da barra da direção. Quando o caminhão entrou na balsa, a Van subiu. A situação na traseira do caminhão era a mesma da Van. Só couberam as rodas traseiras. Os últimos bois ficaram fora da balsa. Eu transpirava e rezava. Já pensava em minha estratégia caso a balsa virasse quando começasse a ser rebocada.
- Será que aquele motorzinho puxaria todo aquele peso? Pior, ele puxou.
Quando a balsa adentrou mais ao rio eu subi mais e conseqüentemente os últimos bois ficaram na água. Eu me sentia como o marinheiro da esquadra de Cabral que gritou “Terra à Vista”, mas eu estava na proa. No meio do rio o cabo de aço ficou na forma de um arco e fazia tanto ruído que nessa hora eu já tinha certeza que ele ir-se-ia romper. O pessoal que estava na balsa começou a ficar aflito, todos vieram próximos a mim, o Garcia falou.
- Agüenta aí, Topa Tudo, que se esta balsa virar, vamos todos nadar juntos, mas Deus há de nos proteger. Eu nada respondi de tão apavorado que estava. Todos estavam prontos para nadar. O pessoal que conduzia a boiada, já tinha tirado os sapatos, não havia uma bóia sequer. Eu continuava com os meus, pois não podia largar a marcha. A travessia toda foi de um único e longo piscão. PQP!!!!!!
Pior destino estava reservado para os bois: para não morrerem de fome, iriam morrer afogados, pois estavam presos. E nós se sobrevivêssemos não escaparíamos dos mosquitos. Eu tinha mais medo de contrair malária que ser atacado por piranhas, cobras ou feras. Até então o grande flagelo do lugar tinha sido a grande incidência de malária. Por questões éticas não vou descrever o que vi das pessoas atacadas por malária e nem de hanseníase.
Quando a abertura do arco começou a diminuir, percebi que tínhamos passado pela parte mais forte da correnteza e os ruídos estavam diminuindo. À medida que a balsa se aproximava da margem, a minha altura diminuía. Graças a Deus, tão logo a balsa foi presa, tirei o carro para dar passagem ao caminhão. Nem olharam para ver se os últimos bois tinham sobrevivido.
Olhávamos um para o outro sem pronunciar uma palavra. Pensei então em comemorar aquela arriscada e gloriosa travessia.
-Vamos tomar uma “catira” (1). Fomos todos para a “tendinha”. Eu lavei meu copo com a própria pinga e ainda o esterilizei em fogo. Até quem não era do grupo, comemorou. Pagamos pinga para todos que quisessem beber. Nessa hora sempre se faz “amigos”.
Na “tendinha” ficamos sabendo que aqueles bois vinham de Cuiabá e com o enguiço do caminhão foi necessário vir outro de Cuiabá para completar a viagem. Os bois não comiam há mais de dois dias. Isso explicava porque estavam com tanta pressa. Se tivesse ocorrido o acidente, ninguém iria nos socorrer.
Eu tive uma noite traumatizante, mal pegava o sono e acordava apavorado de imaginar a balsa virando. Não foi diferente com os demais.
Na segunda-feira quando os “muy amigos” nos perguntaram se fomos conhecer a cachoeira, o Garcia os mandou de volta de onde vieram, sonoramente, em espanhol.
(1) = Era como os pinguços locais costumavam chamar a aguardente e também era a marca de uma cachaça que vinha de outro estado. Nem me lembro da marca da pinga que tomamos.
SANTO BRONZATO em 29/01/2.013