O placebo

O placebo

Muitos ficaram admirados quando Oiram, a víbora notívaga, vestido de palavras, chegou subitamente e, silenciosamente, no meio de néscios. Todos se assustaram e logo deram a voz à Víbora. Ele sentou-se, ergueu a mão e acalmou, com apenas um gesto, a multidão. Olhou para o nada e de lá extraiu o tudo. Com a voz de trovão e a verborragia de todos os sábios, proferiu seu discurso.

- Eu sou o Placebo, aquele que tomar minhas palavras, ainda que não entenda, conhecerá a dúvida. Sou eu o paradoxo do mundo, uma lanterna em meio a faróis e refletores. Na escuridão do vazio criativo, resplandeço e clareio o caminho turvo dos cegos idiossincráticos.

- Tomem meu discurso e bebam nele o poder ideológico da palavra. Sintam a liberdade dos sentidos e construam sentidos a partir dos sentidos que já foram sentidos.

- Eis que venho como um placebo, eivado de vida e curado de mundo. Sou eu a doença da existência; o pária da sociedade; o marginal paraliterário; a águia que voa por cima dos conceitos.

- Arrependei-vos, ó, parvos e ignotos, pois é chegada a hora de sair do seu regaço e se expandir em contradições.

- Esqueça a razão e se a tiver, convença-me! Aquele que buscar o caminho, no caminho se perderá. Sou eu o atalho que não tem rumo e nem direção; a estrada com várias possibilidades; o destino que jamais será encontrado.

- Rechace qualquer um que venha com proselitismo e condene, veementemente, zonas de conforto. Arrisque-se nas esquinas do desequilíbrio e não busque respostas; a pergunta é o esclarecimento.

- Deem à vida o que ela precisa – vida. Deem ao mundo o que ele necessita – mundo. A punção vida deve ser usada até a extenuação e o mundo deve cansar de você, dessa forma, a passagem não terá sido em vão.

- Jamais se agache diante das cobras; todos temos venenos; saiba dar o bote na hora certa. Use dentes e palavras de calão, caso precise. O léxico foi feito para esbofetear aqueles que não sabem usá-lo.

- Apareça nos sonhos acordados dos incomodados por sua presença e, tal qual Morfeu, apareça em tal sonho, travestido da pessoa amada e faça um pesadelo. Eis a víbora notívaga.

- Aponte sempre o dedo na direção contrária que lhe doutrinaram; escarre no papel viciado de ideologias; vergue a caneta que assina somente o discurso castrador.

- Não canse diante de um Procusto. O leito não relaxará; moldará.

- Não siga os falsos deuses, pois muitos são assujeitados.

- Não tenha voz; tenha vozes.

- Fuja de tudo que lhe conforte. Acredite, o fácil complica o caminho para a liberdade.

- Peque; pegue. Retire da estante todo ensino débil e sem o isso ou aquilo.

- Eis que venho como um ladrão, quieto e perigoso. Sou o verbo que não precisou ser conjugado; não sou antes e nem o depois, porém, o percurso. É na estrada que está a sapiência e não no fim do trajeto. Aquele que pensa que chegou, na verdade, está no início de sua ignorância. Não há pódio para quem não tropeçou, não caiu e, tampouco, conheceu as trevas em busca do desequilíbrio.

- Abra corpo, a mente e adoeça, pois o Placebo sou eu. Eis a sua cura!

Oiram, a víbora, levantou-se depois de proferir tais palavras e se perdeu no horizonte sombrio. Aqueles que estavam na penumbra viram-no na noite; aqueles que enxergavam foram cegados pela luz ofuscada do veneno da víbora.

Oiram, a Víbora Notívaga.