Uma ultima musica

Estava um silencio, a única coisa que perturbava aquele silencio era a chuva que batia na janela do meu apartamento no sétimo andar. Eu estava com o rosto colado na janela vendo o movimento lento da cidade e o caos que a chuva trouxe. Ouvia Duke Ellington como se meu corpo fosse parte daqueles solos de saxofone, e daquele som doce do piano, aquele som invadia todos os cantos do meu apartamento como o Licor invadia todas as veias do meu corpo.

Saio da janela, não havia notado não estava com muita roupa, mas para um corpo feminino com boas formas eu estava bem, e não me importava em por uma roupa, estava sozinha e em casa, se chegasse ágüem eu não abriria a porta. Dou mais um gole no licor, aquele gosto quente descendo minha garganta faz-me sentir viva, não sei, mas creio que agora é a única coisa que me faz sentir viva.

A chuva acentua-se, parece que vai quebrar a janela a qualquer momento, dou uma olhadinha lá fora, vejo pessoas entrando em ônibus as pressas, carros andando vagarosamente, a rua se tornava uma mescla de cores por causa dos guarda-chuvas abertos, o mundo era lindo quando chovia, mas meu mundo nunca era lindo, nunca foi, tive momentos de alegrias mas os mesmos sempre traziam tristezas. Noto que meu celular tem uma mensagem, aperto o botão para ler, e o celular fica todo laranja por causa de sua luz.

“ Beth, fiquei sabendo... Estou triste, como aconteceu?”

Beth era como me chamavam e o diminutivo de Elisabeth, que era nome da alguém importante da minha família... Ando pelo pequeno quarto de apartamento, o som do saxofone se torna tão forte quanto a chuva lá fora, sinto que minhas lagrimas caem, nem noto, gostaria de parar de chorar. Tento preparar algo para comer, um ovo frito quem sabe. Procuro ovos, procuro a frigideira, procuro fósforos para ascender o fogão... Olho para a mesa e vejo aquele papel verde:

“CLINICA VINCENTE GONSALVES

TESTE DE HIV

ELISABETH SILVA

20 ANOS

TESTE POSITIVO”

Eram palavras duras a ser colocada em um papel verde, infelizmente não tenho a força de vontade de muitos, infelizmente não quero tratamento, infelizmente no fundo eu queria de qualquer forma ter uma desculpa para o que irei fazer. Não acho os ovos, muito menos a frigideira e os fósforos, Fico olhando aquele papel verde na mesa.

Um trovão abafa a musica, meu coração meio que dispara, não foi susto, foi algo que não sei explicar, foi medo. Meu celular toca, e continua a tocar, não irei atender, quero estes momentos só para mim, quero me afogar em minha dor, quero ser fraca, quero ter uma desculpa, quero qualquer coisa que não seja afeto e carinho, quero que o Jazz entre na minha alma assim como este dia chuvoso fez.

Um brilho, olho para o lado, a lamina de uma faca que brilhava a luz econômica da cozinha. Meu coração manda pegar a faca e eu não titubeio, faço como sua escrava. Pego a faca, e vou até a sala. Mais um gole no Licor, as lágrimas começam a cair novamente sem que eu queira, sempre falaram que eu era uma menina forte que eu conseguiria tudo que eu queria, eu só queria... Eu nem sei o que eu quero e como eu quero, creio que a certeza que tenho é a morte, acho que todo ser humano tem uma certeza dessas.

Tomo minha ultimo gole, o copo fica vazio, passo aquela lamina fria nos pulsos, e vejo aquele sangue vermelho cair, manchando todo a chão, agora era só uma questão de tempo de livrar este corpo deste tormento, sei que isso não melhora nada, mas pelo menos uma de minhas duvidas eu iria tirar: Deus existe? O sangue brota daquela ferida os pulsos, ouço a musica acabar, como minha vida, ouço a chuva, cair, ouço meu celular que toca freneticamente, pedindo para que eu atenda, mas agora é tarde o sangue já esta saindo de mim junto com minha doença, não me fiz isto por isso, fiz porque não agüentaria viver nesta mundo, ter filhos, um marido, e morrer velha, não agüentaria viver na mesmice, não agüentaria, ser quem não sou, não agüentaria ter que fazer isto que fiz com filhos para criar, meu corpo já pede isto ah tempos, mas não tinha nenhuma desculpa para isso, fiz porque queria me livrar das duvidas.

Achei que o cd tinha acabado, havia uma ultima musica, tinha pedido para meu amigo gravar apenas jazz triste neste cd, mas ele gravou stairway to heaven, pedi este cd para este momento e a ultima musica é stairway to heaven ou escada para o céu em bom português, não acredito em coincidência, mas isso foi uma, alias, suicidas, não vão para o céu é o que dizem, mas eu não me importo para onde vou, só sei que aqui não quero mais ficar.

Minha duvida estava entre cortar os pulsos e tomar sonífero ou veneno, creio que para uma mulher ficaria mais trágico sonífero, só que eu não quero tragicismo, não quero uma historia minha, alias, venderia milhões de livros se publicassem meus pensamentos mas creio que iria causar suicídios com minhas duvidas.

Minha visão começa a escurecer, sinto que perco os sentidos, a musica começa a fazer parte de mim e invadir meu corpo no chão, sinto meus dedos sumirem, sinto minha alma morrer junto comigo, sei que levarei minhas duvidas junto a mim, sei que certamente alguém achara meu corpo podre alguns dias depois pelo cheiro, mas não me importo, não ligo o que acontecera a este corpo, não ligo o que acontecera as pessoas que lá embaixo estão passando com guarda-chuvas coloridos pelas ruas encharcadas de chuva, não interessa, só sei que estou morrendo, e tenho uma desculpa, todos falaram que é pela AIDS, todos falaram que morri porque estava doente, todos falaram...

E assim fica tudo preto. E minha consciência some.