Guerra santa no Jequitinhonha

Há aproximadamente cinco anos, tive a honra e graça de, na academia mineira de letras, assistir a um debate com o saudoso escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós, um dos maiores autores da literatura infantojuvenil brasileira. Naquele dia, dentre as muitas falas do autor de O olho de vidro do meu Avô, duas ficaram bem guardadas e, vez ou outra, por razões distintas, com nitidez e brilho, relembro Bartolomeu. Primeiro quando se referiu, com extremo carinho, às montanhas que cercam Belo Horizonte, “as montanhas me protegem”, disse – sensação que compartilhava sem prestar a devida atenção. Segundo quando perguntaram a ele sobre a televisão, da influência desta sobre as pessoas e em especial às crianças, “olha, a televisão é o seguinte, uma repetição infinita para nos lembrar de tudo aquilo que não temos”. A respeito das crianças e a televisão, especificamente, ele foi enfático, ressaltou a imensa importância do exercício da imaginação na formação daquelas e de como esta compromete essa prática de maneira devastadora.

Ontem à noite, novamente me lembrei de suas ideias quando meu Pai chegou, entusiasmadíssimo, nos contando sobre o espetáculo “Nas ondas do rádio”, que acabara de assistir no recém reinaugurado Cine Theatro Brasil.

“Imperdível, imperdível”, não parava de repetir. “Os jingles, as músicas e até as vedetes da rádio nacional..., ôh tempo bom!”

Radio nacional, quantas vezes ouvi meu pai contar sobre aqueles tempos em que toda a família, e até os vizinhos, se reuniam ao redor de um imenso aparelho falante para ouvirem, direto da capital fluminense, as notícias do país de Getúlio Vargas ; os programas musicais, a exemplo do apresentado pelo Almirante, “a maior patente do rádio”, como se dizia à época ; o humor sarcástico e debochado da dupla Alvarenga e Ranchinho, os comerciais que fizeram história, iniciando uma nova era da publicidade brasileira e, claro, as melodramáticas novelas de radio.

Como não pensar no maravilhoso e individual exercício de imaginação, ao escutar, na varanda de suas casas, o capítulo final daquela novela narrada durante meses com toda emoção que cabia nas ondas sonoras?

Certamente, essa mesma imaginação foi determinante na estruturação emocional, cultural e intelectual de gerações e, de tão rica, às vezes produzia efeitos curiosíssimos, como ouvi certa vez de minha querida amiga de Taiobeiras, Rosemay Ferreira. Segundo ela, em 1967, as rádios noticiavam que Israel declarara guerra e se preparava para invadir o país vizinho da Jordânia com inúmeros tanques e soldados. Até aí, nada de incomum em se tratando do eterno “entrevero” oriental. Mas, em uma cidade do nordeste mineiro, bem na divisa com o sul da Bahia, a notícia reverberou como sirenes durante a segunda guerra mundial antes dos bombardeios! Motivo? O nome da cidade, Jordânia. E as coincidências não pararam por aí. Naquele período, o governador do estado era Israel Pinheiro(1965-1970), inimigo político do prefeito da cidade – na década de 60 não havia meio termo político em relação à ditadura militar. O que aconteceu? Acreditem, “quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum creosotado”- me desculpem, ainda estou sob a influência dos jingles da radio nacional – prefeito e moradores se armaram até os dentes com garruchas, foices e facões e se postaram todos, atentos e destemidamente, na entrada da cidade e ficaram esperando, sabe-se lá Deus quanto tempo, o exército do desaforado do Israel.

Humberto Brusadelli
Enviado por Humberto Brusadelli em 14/02/2014
Reeditado em 29/09/2014
Código do texto: T4691635
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