RAIMUNDO FAGNER E FRANK NELSON.

Esta é uma história que você pode até achar engraçada, mas confesso que, na época em que esses fatos ocorreram, me deixaram um tanto quanto constrangido. Logo que comecei a escrever partituras musicais para registro na calçada da rua do passeio público, um dos primeiros compositores que conheci foi o Frank Nelson, o cara mais desconfiado que eu já vi na vida. Para se ter uma ideia, durante três anos vinha me encontrar todos os dias, religiosamente e nunca me mostrou uma canção sequer de sua autoria. Tinha medo de que eu ou qualquer outra pessoa desse Rio de Janeiro tentássemos roubá-la. Frank Nelson era um cearense moreno, baixinho, que aparentava ter seus quarenta e poucos anos. Trazia sempre o cabelo e a barba por fazer. Andava com a mesma roupa azul e preta, bem limpinha, mas incrivelmente amarrotada. Uma figura misteriosa que não tinha lenço, nem documento, nem endereço, nem dinheiro, nem parentes, nem sonhos, nem dentes. Um homem sofrido, calado, de poucos amigos, mas que era, no fundo, uma figura interessante, dócil, e até divertida. Ficava horas em pé, parado, em silêncio, me olhando fazer partituras. As pouquíssimas vezes em que abria a boca era sempre para me pedir dinheiro. Uma hora para um café, outra para um almoço, para um cigarro e muitas outras para uma "intera" na sua passagem (se bem que eu nunca fiz a menor ideia de onde ele surgia ou pra onde sumia). Um dia meu amigo apareceu, em meu escritório a céu aberto, um tanto tristonho, jururu, cabisbaixo, macambúzio. Carregava um olhar de peixe morto caído no chão. Um quadro tão deprimente que me deu dó. Queria porque queria assistir ao show do cantor Raimundo Fagner, no Canecão. Até chorar o pobrezinho chorou. Eu, que sou um coração de manteiga, fiquei muito chateado, pois não encontrava uma maneira de ajudá-lo. Naquele dia eu estava na maior pindaíba, numa maré de sapo tremenda, latindo pra economizar o cachorro, vendendo o almoço pra comprar a janta, tirando doce da boca de neném. Meti a mão nos bolsos, na carteira magricela e só decepção. Nenhuma prata pra ajudar o meu desconsolado companheiro. Foi quando lembrei de um outro amigo, o Carlão do Passeio, dono da banca de jornal mais famosa e bem sucedida do centro do Rio de Janeiro. Carlão era gente nossa, uma figura bacana, simpática, boa de onda e de coração. Certamente entenderia a minha preocupação e me ajudaria a resolver essa história tão triste, na qual eu era um simples personagem coadjuvante. Contei tudo ao Carlão, e como havia previsto o generoso jornaleiro também se comoveu. Com os olhos rasos d’água me emprestou o dinheiro da passagem e do ingresso, os quais entreguei nas mãos do meu amigo Frank Nelson, que abriu um felicíssimo sorriso vazio

de orelha a orelha e não perdeu tempo: entrou no ônibus 174 com a rapidez de uma bala perdida e foi solfejando “As Velas do Mucuripe”, “Deslizes”, “Canteiros”, “Coração Alado”, “Borbulhas de Amor” e várias outras pérolas do repertório do grande cantor, "Faguenerando" em direção a casa de espetáculos em Botafogo. Ufa! Voltei para o meu barraco em Senador Camará com a felicidade do Arcanjo Gabriel após ter cumprido sua celestial missão. No outro dia, fiquei sabendo pelo próprio Frank Nelson que o show foi maravilhoso. Fagner esbanjou talento, simpatia e emoção naquela noite. Sua apresentação foi tão marcante e comovente que, ao final, o meu amigo nem conseguia se levantar para ir embora de tanto que chorava. Os "roadies", garçons, músicos, iluminadores, técnicos, câmeras, repórteres e outros profissionais que ainda estavam no recinto se preparando para irem embora, vendo a choradeira do meu amigo, ficaram sensibilizados e, mesmo sem saber porquê, também choraram. A equipe de segurança, duzentos e vinte e oito brutamontes de dois metros e vinte e cinco de altura mínima obrigatória, que assistia a tudo pelas centenas de câmeras do circuito interno de vigilância, veio aos prantos socorrer o meu amigo chorão. Frank Nelson, após conter sua contagiante compulsão, aceitou contar aos chorosos espectadores os motivos do seu pranto estupefante, cavalar, avassalador. Os "roadies" o conduziram a um banquinho de madeira que havia sido esquecido no centro do palco. Os garçons lhe trouxeram uma generosa dose de "wisk" com água e açúcar. Os músicos lhe dedicaram uma trilha sonora improvisada. Os iluminadores reacenderam as luzes. Os técnicos religaram os microfones e os câmeras aproveitaram para gravar tudo, pois não queriam perder nenhuma cena daquele espetáculo que, com certeza, daria pontos altíssimos de audiência a qualquer programa de "reality-show". Os repórteres já se acotovelavam espichando seus gravadores, microfones e blocos de anotações. Meu amigo Frank Nelson deu início ao seu tão esperado pronunciamento. E mandou bem. Fez seu desabafo, deu seu recado. Falou que também era compositor, que havia nascido no Ceará, exatamente em Orós, terra amada de Fagner. Disse que cresceu em uma região paupérrima, escaldante, desolada, arrasada, calamitosa, carcomida por séculos e mais séculos de fome e seca. Contou das dificuldades que atravessara na vida até ali e que pela constante falta de recursos nunca pôde assistir a um show do seu conterrâneo "mega-star", nem mesmo comprar um dos seus tão maravilhosos álbuns. Mas que colecionava recortes de jornais e revistas antigas com que as pessoas jogavam fora. Conhecia profundamente todos os pormenores de sua carreira e até de sua vida pessoal. Falou que Fagner era para ele o maior exemplo de gente simples, humilde, pobre e sofrida que lutou e conseguiu vencer. Relatou, ainda, que havia composto um “musicão”, uma verdadeira obra de arte, especialmente para o artista, mas que era muito difícil uma pessoa simples como ele ter acesso a uma estrela tão grande, radiante, reluzente e ofuscante como Raimundo Fagner. A platéia de profissionais, emocionada, gritava, ovacionava, aplaudia de pé e numa gigantesca comitiva de lágrimas levaram o meu amigo Frank Nelson nos braços até o camarim de Raimundo Fagner em pessoa. Meu amigo não se conteve ao estar frente a frente com o seu ídolo. Chorou durante uma hora e meia, sem intervalo. Um porta-voz tentava contar, bastante emocionado, a lacrimejante história do meu amigo ao artista, que também não se segurou chorando mais uma hora e meia sem que houvesse consolo. Depois de tanta choradeira, Fagner, abraçado ao pescoço ensopado de lágrimas do meu amigo, pediu, ainda entre soluços, que este lhe cantasse o tal “musicão” feito exclusivamente para ele, seu conterrâneo e artista preferido...

– "E você... cantou?" –Perguntei aos prantos.

– "Cantei não, Fagundes. Sei lá se ele era ladrão! A música nem

estava registrada!"

Fiquei muito aborrecido com a falta de sensibilidade do meu amigo,

mas enxuguei as lágrimas e tentei controlar o meu ressentimento.

Mas numa atitude quase que impensada tive a infelicidade de pedir

ao meu amigo que mostrasse a sua tão bem guardada composição,

a tal obra de arte, o seu já afamado “musicão”. Para que?... Ele congelou-se como um "iceberg", mudou de cor feito camaleão com hepatite e me olhou com um olhar fulminante de sucuri apedrejada. Fungou igual a um tamanduá-bandeira nos quinze anos da formiga saúva e balançou a cabeça tipo cueca samba-canção esquecida no varal em noite de chuva. Foi rodando, rodando, que nem o pinto de pato quando a pata tá com a macaca. Respirou fundo, lembrando um aspirador de pó recém-recauchutado, e evaporou-se na fumaça igual a ninja quando apanha. Nunca mais apareceu na rua do passeio público. Deve ter voltado pro Ceará e está escondido num ranchinho qualquer lá de Orós, contando pro povo que na cidade maravilhosa o Fagner, eu, você, o Carlão jornaleiro e todo mundo nessa história estava cheio de má fé, querendo era roubar o tal do “musicão” dele.