CLARICE.

Foi o mais importante nome nas rodas de malandragem de toda a favela. O mais acre e mais doce que esta já conheceu. Clarice, a banqueira-mor, a grande chefe do jogo de bicho. A figura mais emblemática, polêmica, complexa, paradoxal que adentrara o coração cauteloso da comunidade. Para muitos, foi um muro de proteção, de contenção. Para outros pirambeira perigosa e escorregadia. Para o seu povo foi a cobertura tranquila, o abrigo seguro, a trincheira conquistada em meio aos bombardeios aos quais a favela há muito se habituara. Para chegar no seu pedaço tinha que ser devagarinho. Pra sambar no seu terreiro, só no passo do miudinho. Quem cantasse muito alto tinha que descer dois, três tons. Se esganiçasse muito a voz, terminava sussurrando sua melodia. No seu "metiê" os instrumentos estranhos de quebraria faziam silêncio absoluto. Quem era de briga, deixava a valentia em casa, quem era de paz, tinha ternura tranquila sob suas asas de anjo. Seu doutorado foi na faculdade da vida, com os cientistas que patentearam, ainda no laboratório, toda essa história de malandragem. Mulher alta, bonita, bem trajada, porte elegante, sempre na estica. Era guarita certa pra malandro safo, de papo reto, sem fazer curva. Um caminho de bonança. Mas também, uma estrada turva onde muito aprendiz de cavalariço caiu da montaria e se encrencou sob seu trote. Criou um bloco carnavalesco diferente, o “Aprendizes”, numa hora de instabilidade, de insegurança, do mais perplexo medo. Onde a favela tava que era fogo puro. Em seu território, as famílias tinham o alento de uma faixa de segurança livre de conflitos. Para ela seguia todo o povo, em suas dezenas, centenas, milhares. Eram apostadores da alegria que sempre ganhavam. Era um leão cercado por todos os lados, que dava sempre na cabeça seguido de urso, tigre, águia. Em sua quadra não se criava cobra ou porco. Todo crocodilo era cercado e invertido. (Dudu Fagundes, O Maestro das Ruas)