CRÔNICA DE UM FUNERAL

CRÔNICA DE UM FUNERAL

Morrer, no dicionário Aurélio é definido por um amontoado de palavras, como: “deixar de viver, finar-se, falecer, etc.”, sem contar uma boa quantidade de sinônimos: “bater as botas, bater a caçoleta, apitar, dar a alma a Deus, entregar a alma ao diabo” e vai por aí afora.

Já no meu entendimento morrer significa: abandonar as boas coisas da vida, livrar-se das dívidas e dos problemas angustiantes, livrar-se das perseguições dos credores, apagar-se, despojar-se dos bens conquistados com unhas e dentes e deixar tudo nas mãos de... Sabe lá Deus com quem.

Contudo, às vezes, quedo-me a pensar: morrer não é tão ruim assim, pois tem suas compensações, pelo menos no dia em que “bater a caçoleta”. Por exemplo: nesse dia recebe-se todo afeto e carinho não só dos parentes, como também dos amigos e curiosos que comparecem ao velório. Frases lindas como estas são comuns: “ele está tão bonito, parece que está dormindo"... "Deus o levou porque está precisando dele no céu...Ele era tão bom”... E assim por diante... Se o falecido era bandido, misteriosamente, transforma-se em mocinho.

“Valha-me Deus”!!!

A vantagem de quem “bateu as botas”, é ouvir calado tantos elogios sem precisar expressar sua gratidão.

Tem aqueles que comparecem ao velório apenas por obrigação. Sabe como é: fazer média com os parentes, ou amigos do “esticado”, ou ainda fazer novas amizades, e até para discutir um conveniente negócio. Em compensação são forçados a aguentar até o momento de levar o defunto para a cidade dos pés juntos, embora sabendo que passarão por um verdadeiro martírio.

Na sala aglomeram-se pequenos grupos para cochicharem em segredo. “ Deus sabe lá o que estão comentando”...

E tem aquelas “espanta moscas”, sempre com lenços na mão e que não desgrudam da cabeceira do defunto, “nem a pau”. A cabeceira do caixão é um lugar disputadíssimo pelos parentes, ou alguma amiga da família, às vezes, não tão próximos assim. Quem está sentado ali, não arreda o pé nem quando está apertada para fazer “xixi”; ora, se sair dali, quando voltar o lugar certamente já estará ocupado. Daí, reclamar não pega bem; “esse lugar é meu!” Não dá... O jeito é aguardar que a nova espanta mosca vá também fazer “xixi", mesmo que esteja morrendo de raiva, o jeito é esperar.. Aí, ela retoma o lugar e só o deixará na hora do enterro, ainda que já esteja pingando na calcinha.

O tempo não passa. Muitos já estão cansados e não vêem a hora de dar o fora, até mesmo antes de levar o defunto, de mansinho, sem que ninguém veja; outros permanecem mesmo contra vontade, sempre forçando um semblante fúnebre; fazer o quê...

Tem aqueles mais sabidos que só dão as caras bem na hora do enterro; vão até ao caixão do “esticadão”; fazem “o nome do padre e fingem rezar uma prece.

Para disfarçar a inquietude da longa espera, todos passam a circular pelo salão. Isso também é uma velha tática para mostrar a cara, faz parte do esquema para evitar o falatório maldoso: “não vi fulano... cicrano não apareceu... não vi beltrano também”...

De repente, acontece a uma inesperada metamorfose na cara dos presentes. Já se pode notar nos seus semblantes uma alegria camuflada e contagiante. Um vozeirão de gente presentes no salão chega aos ouvidos de alguns mais afastados do caixão. Certamente, é pelo contentamento de saber que a agonia vai terminar. Chegou a hora de fechar o caixão e levar o defunto.

Ufa! Até que enfim! Com satisfação todos já começam rezar juntos, com algum desafino entre os rezadores. Pronto! Lá se vai o “apagado”. Agora todos querem ajudar carregá-lo; quanto mais rápido melhor. Aí também tem uma boa disputa, pois carregando o caixão, sempre aparecem mais, mas outros não gostam de fazer força e acompanham satisfeitos com algum sorriso de alívio.

É claro que já cumpriram suas obrigações.

Ao descer o caixão na cova, os presentes batem palmas. Terminou o ato final. Mas uma dúvida paira no ar: as palmas seriam pelo desempenho do defunto no papel de ator, ou pelo contentamento de se verem livres dele? Sei não...

Daí, os presentes passam a jogar torrões de terra sobre o caixão que já está lá no fundo do buraco. Isso seria por acaso para acabar mais rápido? Também não sei não... A viúva, enquanto joga uma pétala de rosa sobre o caixão, entorta os olhos para algum futuro pretendente que paira ao seu lado.

Mal terminada a cerimônia fúnebre, a maior parte dos presentes se mandam. Grupos de parentes aqui e ali cochicham, possivelmente tentando chegar a um acordo na divisão dos bens deixados pelo finado. Parentes mais próximos dão uma ou duas choradas forçadas e, pronto! Acabou-se. Quase todas as mulheres estão de óculos escuros, mas por detrás deles não se vê nem uma santa lágrima.

Parece que todo aquele pesadelo infernal dissipou-se como por encanto.

Ufa! Que alívio!” Provavelmente é o que todos devem estar falando com si próprio. Ora, tais sentimentos não podem tornarem-se público, o que os outros vão falar?

No dia seguinte, os parentes retomam suas atividades normais. Aqueles que vieram de outras cidades aproveitam para descansar uns dias e rever os amigos. É a oportunidade para pôr as fofocas em dia.

Do falecido, quase já nem se fala mais. Os poucos comentários são feitos com certa frieza. Só um ou outro parente relembra fatos ocorridos há algum tempo, ou faz alguns elogios ao falecido quando em vida.

No dia seguinte, após terem despachado o defunto, só alegria entre os parentes e amigos, que até se reúnem para tomar umas e outras em memória do falecido.

Ele já era. Está bem guardado a sete palmos de terra.

Mas, se um dia acontecer dele voltar...

Luiz Pádua
Enviado por Luiz Pádua em 01/03/2014
Reeditado em 01/03/2014
Código do texto: T4711301
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