O dia da Igualdade.

Foi muito estranho este dia. Aparentemente um dia qualquer, no planeta que um dia foi batizado de “Planeta Terra” por seus habitantes, que não haviam sido informados do que aconteceria, e nem mesmo poderiam suspeitar.

Em todo planeta, as pessoas, novas e velhas, de todas as raças, gêneros e crenças sentiram sono, inicialmente, um leve sono. Como era um dia em que apenas alguns poucos trabalhavam, muitos voltaram para suas casas e deitaram para dormir. O sono tornou-se tão forte em todos que até os que haviam acabado de despertar resolveram voltar a dormir. Alguns corajosos empregados que usando toda sua força de vontade não abandonaram seus afazeres, dormiram no lugar onde estavam. Os motoristas desligaram seus carros e dormiram sobre o volante. Alguns usuários de drogas não entendendo o efeito contrario da substancia, xingaram seus traficantes e dormiram, em paz pela primeira vez em muitos dias. O sono foi se alastrando até que todos no planeta dormiram tranquilos.

No outro dia, em outra realidade, um a um foram acordando naturalmente, sentindo-se renovados como se tivessem dormido durante milênios. Olhando ao redor ninguém entendia nada, tudo o que eles conheciam havia se desintegrado, não existiam mais carros, ruas, casas, árvores, animais, coisas, e muito menos explicações.

Todos que acordavam, percebiam com algum pavor que estavam agora em outro corpo, todos os novos corpos com exatamente a mesma forma e a mesma voz falando a mesma língua, eram corpos brancos como giz, com baixa estatura, semelhantes a crianças, todos com rostos iguais, não possuíam sexo, nem cabelo, nem roupas, nem nada que tornasse possível distinguir um do outro.

A paisagem observada no lugar era surpreendente, um infinito chão de algo semelhante ao vidro, tão transparente que parecia não existir, pelo qual passava uma fraca luminosidade que aparentava vir de lugar nenhum. Esta claridade iluminava a tudo, em todos os ângulos, como se viesse de todo lugar. Ao olhar para cima, não se notava nenhuma diferença de se olhar para baixo, tudo era um imenso vazio.

Os seres olhavam-se uns para as outros sem entender o que estava acontecendo, alguns até sem questionar-se, alguns tentavam se acordar, mas, não sentiam a dor dos próprios beliscões. De súbito, alguém começou a gritar em desespero, em seguida outros desesperados o imitaram em uma incrível reação em cadeia que acabou por fazer despertar até o último dos seres:

“É o dia do Juízo Final!”, “Estamos mortos!”, “Vamos prô inferno”, “Deus ! Onde está você?”, “Socorro!!!”, “Que lugar é este?”, “Pai nosso que está no céu... “, “Mãe! Pai! Onde estão vocês ?!” – E muitas outras...

Os seres gritavam seus próprios nomes, os nomes de seus familiares e amigos, chamavam por seus deuses e por seus demônios, exigiam uma explicação, queriam voltar a vida de antes, queriam ter a forma de antes, sentiam como se tivessem perdido as coisas mais preciosas de suas existências. Com o barulho gerado pelos gritos de desespero e medo era impossível para qualquer um dos seres escutar ou distinguir o som de qualquer outra pessoa, pois era uma só voz gritando milhares de coisas diferentes ao mesmo tempo. Depois algum tempo o primeiro ser decidiu se calar, e logo outros o seguiram.

Durante horas o silêncio foi total.

Alguns seres se perguntavam mentalmente se haviam morrido, outros acreditavam ser aquele o “Dia do Juízo Final” do qual os livros sagrados comentavam, alguns suspeitavam estarem dentro de um disco voador, mas, ninguém tinha certeza de nada. Não era o céu nem o inferno, não era bom nem mal, apenas era um outro lugar...

Alguns se sentaram, outros se deitaram e apenas alguns poucos continuaram em pé, todos esperando que algo acontecesse, a escolha da posição que cada um iria tomar era individual, mas, as opções iguais para todos.

Após horas de silêncio, Lucy, que na Terra foi uma jovem brilhante, chegou a uma conclusão incrível, e resolveu falar em alta voz a única verdade observável naquele local:

---- Aqui somos todos iguais !

No meio do incrível silêncio a voz de Lucy foi ouvida por todos os bilhões de seres que ali estavam, e por um instante todos meditaram um pouco a respeito. Todos pareciam concordar com a afirmação de Lucy até que Leopolda, a muitos quilômetros de distancia e que havia sido uma senhora de classe muito alta em sua antiga vida resolve protestar:

---- Mesmo tendo um corpo parecido com o de todos eu ainda tenho nível superior, mais cultura e conhecimento. O que me faz diferente de um mendigo por exemplo!

---- De que te adianta todo conhecimento das escolas pagas da Terra se aqui nada do que conhecemos existe? Sobre este lugar todos sabemos a mesma coisa: NADA! – Fala revoltado Afonso, um ex-mendigo, que apesar de nunca haver tido uma oportunidade de crescer na antiga vida, tinha uma visão extraordinária do velho mundo.

---- O que você sabe deste mundo? – Pergunta outro ex-mendigo que estava bem ao lado de Leopolda.

Novamente iniciou-se uma confusão, com muito barulho e gritos com direito de ninguém entender nada do que era dito. A ex-milionária tenta agredir o ex-mendigo, que revida, e outros que no planeta Terra eram amantes da violência, em todos os lugares lhes acompanharam.

Depois de alguns minutos agredindo uns aos outros, perceberam que era um esforço inútil, pois a dor não existia naquele lugar. Muitos se deprimiram neste instante. Em seus pensamentos procuravam alguém para culpar, alguém que roubou-lhes a sua forma física, sua voz, e até mesmo a sua capacidade de sentir e causar dor, que na Terra era tão apreciada por eles.

Cristofer, que já estava começando a aceitar a nova realidade, sugeriu que em vez de ficar ali esperando algo acontecer, todos fossem explorar o novo lugar, pois afinal de contas já estavam ali, cedo ou tarde teriam que aceitar a nova realidade e aprender a conviver com ela. As palavras do garoto repercutiram na multidão fazendo com que os seres se dividissem em grupos e fossem cada um para um lado.

Os grupos andaram pelo imenso deserto transparente, e conversaram sobre o que eram, o que tinham e o que faziam na antiga realidade, que para a maioria das pessoas, ainda era apenas o que existia, ou pelo menos, apenas o que deveria existir. Alguns seres estavam felizes pois aquele lugar poderia ser uma nova oportunidade que antes nunca haviam tido, outros tristes, pois aparentemente nada do que eles desejaram fazer durante a vida poderia ser realizado naquele lugar. Algumas excursões foram longe, outras desistiram mais rapidamente. Tudo o que encontraram era um grande espaço vazio, suspenso por um infinito chão de vidro.

Todos voltaram a se encontrar como depois aconteceu muitas vezes.

Durante algum tempo, que na mente dos seres que sem nenhum evento astronômico para se basear continuavam tentando contar os dias, seriam aproximadamente dois meses, todos já haviam esquecido de suas antigas diferenças, conversavam com todos e aceitavam-se uns aos outros. Uma intensa vida social surgiu naquele lugar ainda sem nome. As pessoas debatiam a respeito do que era necessário ou não no antigo planeta Terra, comentavam que fariam muitas coisas diferentes se tivessem outra chance de viver por lá. Comparavam o que era melhor na Terra e o que era pior do que a situação atual. Questionavam-se e faziam suposições a respeito dos motivos da vida, dos deuses e daquele lugar onde estavam.

Alguns ex-cléricos declaravam saber a resposta, “É a vontade de Deus” – E nisto eles estavam quase certos, mas, se enganavam completamente ao concluir que “Este lugar é para que nós paguemos nossos pecados, é o purgatório!”. Alguns filósofos e cientistas faziam questão de lembrar a todos que ninguém sabia ao certo o que era aquele mundo e nem como ele funcionava. Que aquele lugar não era bom nem mal, afinal não existia dor, fome, doenças nem tantas coisas ruins que haviam no Planeta Terra, em compensação também não havia nada de realmente bom. Era um lugar neutro, onde as escolhas individuais de cada ser o tornariam bom ou ruim para cada um.

Passado mais algum tempo a intensa vida social entre os seres fez surgir uma espécie de amizade mutua, que fez daquele lugar um lugar bom para todos. Pela primeira vez, todos os seres haviam aceitado a nova realidade, aceitavam viver naquele mundo mesmo sem saber como foram parar lá ou o que vieram fazer. Continuavam sem ter nenhuma resposta convincente para suas perguntas, mas, já haviam aprendido a conviver com o fato.

Reinava a alegria quando todos desistiram de esperar algo diferente acontecer, porém, foi bem neste momento que algo diferente aconteceu:

----Milagre!! – Grita um ex-pastor ao ver que algo estranho, como uma espécie de chuva prateada vinha caindo do alto.

Alguns olhavam ansiosos para cima, esperando que aqueles pontinhos prateados caíssem sobre suas cabeças, outros tiveram medo e tentaram correr para fugir.

Em alguns minutos olhando ansiosamente para o alto, os seres puderam perceber o que é que estava chovendo, obviamente que pareceu muito estranho, mas, naquele mundo tudo era aceitável. Estavam chovendo folhas de papel em branco, como as que haviam na morada natal.

Todos corriam e pulavam, tentando pegar o máximo de folhas possível, estavam se divertindo com isto até que a chuva acabou. Não que alguém estivesse contando, mas, o número de folhas que caíram era exatamente o número de seres que estavam naquele lugar. Havia apenas uma folha para cada, porém alguns pegaram muito mais do que apenas uma, deixando outros seres sem nenhuma.

Uma situação muito interessante surgiu após a chuva, o senso de valor herdado do antigo planeta voltou a tona. Neste instante o valor de cada pessoa era representado pela quantidade de folhas que conseguiu pegar. Os seres se agarravam as folhas de maneira a protegê-las caso alguém desejasse roubá-las, e em silencio expressavam o seus antigos medos. Um estranho clima de egoísmo e inveja surgiu no ar.

Pietro, um ex-menino de rua, que ficou sem nenhuma folha pediu uma a um outro ser, que tinha duas, este outro ser ficou indignado, furioso, e com muito medo de ser roubado.

---- Não! Não! Não vou dar nada, essas folhas são minhas, fui eu que peguei, se você não pegou espere outra chuva! Ninguém vai tirar minhas folhas de mim!!!

---- É só papel! - disse um ser que estava próximo segurando quase vinte folhas.

---- Então de uma das suas para ele!

Antes que alguém decidisse roubar, ou que outra guerra inútil começasse, Heloísa, uma ex-senhora idosa que durante a vida praticou os ensinamentos cristãos, rasgou a sua única folha ao meio, e deu a metade para Pietro, que lhe agradeceu profundamente, mesmo se saber o que fazer com a meia folha recebida. Foi uma cena de extraordinária beleza e emoção. O amor superou o medo, e se espalhou no interior de vários outros seres generosos, que imitaram a atitude de Heloísa em outra grande reação em cadeia. Alguns compartilhavam suas folhas imaginando que algum Deus estaria observando e condenando o egoísmo, outros o faziam por já haverem concluído que folhas brancas naquele local não teriam muita utilidade, visto que mesmo que fossem transformadas em dinheiro não haveria nada para se comprar com elas. Centenas de milhares de seres distanciavam Heloísa de Karina, mas, quando Karina recebeu sua meia folha, imediatamente esta se transformou em uma folha inteira. As meias-folhas em todo local, como que por um milagre, cresceram e se transformaram em folhas inteiras nas mãos de seus proprietários. O efeito foi se tornando cada vez mais rápido e natural até que após alguns instantes todos possuíam ao menos uma folha.

Até aquele momento, todos ainda eram iguais, mas, se diferenciavam pelas atitudes que tomavam e pelo número de folhas que possuíam.

Henry, que na Terra era um bem conceituado cientista resolveu fazer um teste, e rasgou uma de suas folhas ao meio. Como o esperado as duas metades se transformaram em folhas inteiras. Rasgando e rasgando, em alguns minutos ele possuía mais de cinquenta folhas. A experiência foi gradualmente repetida por todos durante alguns minutos de extrema euforia, e aqueles seres que antes se preocupavam por não haverem folhas o suficiente, agora experimentavam a prosperidade infinita!

Passou algum tempo onde tudo o que se via e ouvia eram folhas sendo despedaçadas e se duplicando, bilhares de folhas adicionais foram produzidas até que todos estivessem seguros de possuir folhas o bastante. Na verdade, o Universo populado já estava quase soterrado nestas folhas quando Luzia uma Ex-secretária e mãe de família resolveu questionar a Deus, olhando para o infinito vazio acima de si:

---- Deus muito obrigado pelo maravilhoso presente que nos deu, mas, e o que iremos fazer com estas folhas?

A pergunta foi ouvida e propagada da forma como tudo parecia refletir em todos naquele lugar. Uma vez que a pergunta foi feita por todos os seres, não havia mais euforia, apenas dúvidas e silêncio.

Osvar, que na Terra representava um dos mais importantes grupos de pesquisa cientifica, chamou outros seres para pesquisar as propriedades e possíveis utilidades das folhas.

Esfregando rapidamente uma na outra, conseguiram fazer fogo e por pouco não incendiaram todo o local. Dobrando fizeram bichinhos de papel, descobriram que rasgando e soltando uma das metades no chão a metade largada não crescia, e num impulso de documentar suas descobertas, descobriram que encostando a folha na testa podiam pintar os seus pensamentos nas folhas.

Duas antigas novidades re-surgiram para as pessoas naquele mundo, a arte e a escrita! Todos ainda eram iguais, mas, agora podiam se diferenciar pelo conteúdo de seus papeis. Com estas novidades, várias outras “sub-novidades” surgiram. A alfabetização foi a principal delas, já que todos eram em essência analfabetos de sua nova língua criada a partir de pensamentos gravados em papel, tiveram que aprender as novas convenções sugeridas como “a melhor maneira de se expressar gramaticalmente por imagens” que foi imposta pelos cientistas e antigos eruditos literários da Terra. Formaram-se então dois grupos distintos de seres, os alfabetizados e os não alfabetizados. É interessante que devido as propriedades das folhas, a grafia convencional apresentava diversas dificuldades de ser expressa, tendo que ser criada uma maneira totalmente nova de se expressar graficamente, através de imagens continuas. A nova técnica de escrita era aprendida com a mesma dificuldade por qualquer pessoa, independente de seu grau de instrução no antigo planeta. E devido a esta dificuldade, alguns seres escolheram ficar sem aprender a escrever, ou a ler no novo local.

Rapidamente os encontros sociais se transformaram em museus de arte, onde todos admiravam as gravuras da mente de todos. As figuras eram na maioria das vezes cenas do velho mundo, crianças, paisagens, famílias, antigos quadros de “grandes pintores”, cenas religiosas, imagens de tristeza, de violência, e muitas, muitas imagens de sexo, do mais comum ao mais bizarro. Haviam também algumas poucas falando do novo mundo, geralmente eram muito parecidas umas com as outras, exceto pela expressão e postura dos seres, que indicavam tristeza ou alegria. Era impossível distinguir, mas, uma das imagens mais populares, retratava Heloísa rasgando sua folha para reparti-la com Pietro. Logo nas primeiras reuniões de arte, algumas pessoas que na Terra eram muito moralistas, sentiram-se ofendidas ao ver cenas de sexo e violência mescladas com paisagens e crianças. Após muita gritaria e discussão, os seres acharam interessante dividir as reuniões em galerias onde cada uma apresentasse apenas um tipo especifico de imagens, quem desejasse ver sexo iria para a exposição de sexo, quem desejasse temas religiosos iria para exposição de religião, e assim por diante. As galerias ficavam a uma grande distancia uma da outra, e eram identificadas por um tapete feito de folhas coloridas com cores que acabaram sendo conhecidas e identificadas por todos.

Nas galerias os seres conheciam outros com interesses semelhantes, e logo formaram-se os clubes oficiais. É bem verdade que certos clubes já existiam, o da ciência, o da religião, o dos filósofos, os dos deprimidos com o novo mundo, mas, agora com a invenção dos tapetes, formaram locais específicos para seus encontros. Em pouco tempo, quem olhasse para baixo, veria apenas os tapetes, símbolos e cores dos clubes ao invés do infinito vazio abaixo. No início, para identificar pessoas do mesmo clube, todos carregavam nas mãos folhas com as cores e símbolos que os identificavam.

Agora os seres se distinguiam não só pela alfabetização e pelos conteúdo de seus papéis mas também pelos clubes a que pertenciam e exibiam.

Com o surgimento dos clubes, as diferenças entre os seres se tornou mais evidente, e os conflitos entre clubes se iniciaram. Os membros do clube dos Católicos Moralistas se revoltaram contra o clube do Prazer Sexual. O clube dos Evangélicos contra o grupo dos Espiritualistas, o clube da violência não tolerava o clube dos pacifistas, e assim por diante até os ex-ricos contra ex-pobres e os milhares de times de futebol e outros grupos esportivos que os seres conseguiam lembrar de suas antigas vidas...

Como não existiam maneiras de ferir os seres, os ataques físicos eram inúteis. Por conta disto foram inventadas outras táticas de guerra muito interessantes, que ao invés de armas utilizavam argumentos. Criaram-se as áreas de propagandas, que ficavam no espaço vago entre os clubes e era onde alguns seres tentavam convencer os outros a sair de determinados clubes e entrar em outros. As pessoas eram atormentadas com milhares de folhas com argumentos do antigo mundo, tentando explicar por que era errado produzir certos tipos de imagens e frequentar certos clubes. O ódio e rivalidade entre os seres se tornou tão grande que muitos se viram obrigados a esconder os papeis dos clubes que frequentavam, e utilizar papeis dos grandes clubes para não serem incomodados.

Os “livros sagrados” do antigo mundo foram escritos novamente, de acordo com a memória dos seres, e muitas cópias foram feitas. A fé nestes livros justificava para alguns seres qualquer ato de violência contra ideias diferentes, e logo ataques com incêndios queimando toda a produção de um clube ou de outro se tornaram corriqueiros. Não demorou muito para que o fogo fosse proibido, destruir as folhas de outro ser era o único crime que alguém poderia cometer e, ter as próprias folhas destruídas era a única punição possível. Enquanto um grupo de seres vigilava para que o fogo não fosse utilizado, outros grupos que também se acreditavam no direito de utilizar o fogo bolavam meios de violar a proibição sem serem pegos.

A situação se complicou quando descobriram que se pressionassem um folha gravada contra o corpo e imaginassem ela como uma tatuagem, a folha realmente grudava de forma permanente. Desta forma surgiram os crachás impossíveis de remover, que diziam o nome de quem o usava, assim como os clubes a que ele pertencia. Grandes clubes não permitiam mais a entrada de quem utilizasse crachás de clubes rivais, assim como quem não utilizava o crachá oficial do clube. O pretexto dos grandes clubes para obrigar os membros a utilizá-los era que assim ninguém precisaria falar com alguém de ideias diferentes das suas, e isto supostamente iria diminuir o atrito entre os seres, mas, era fato conhecido, que isto apenas seria usado como forma de discriminar outros seres e impor-lhes algum tipo de medo. Logo, estar em certos clubes sem o crachá oficial foi considerado crime, passível da destruição de todas as folhas do criminoso e uma marca permanente que indicava que um crime foi cometido. Além dos criminosos, haviam também os heróis, aqueles que impediam o uso não autorizado do fogo, ou que denunciavam um criminoso infiltrado no clube, seus corpos eram marcados com símbolos de honra e mérito. Outros ganharam bastante influencia dentro dos clubes, e eram marcados como lideres, e em todos os locais que aceitavam estas marcas eram tratados com mais respeito do que se deveria tratar os seres comuns.

As pessoas ainda eram todas iguais, mas, agora podiam ser diferenciadas pelo status, pelos crimes que cometeram e os que impediram.

Paralelamente com todas as intrigas dos seres, as folhas haviam transformado a paisagem radicalmente, os seres fizeram quadros e paredes com dobraduras para pendurá-los, haviam também muitas folhas escritas onde estavam documentadas cientificamente as propriedades conhecidas das folhas, e a cada nova descoberta o mundo mudava inteiramente.

Um ser, que havia sido isolado por todos, por não se oficializar em nenhum clube, por não querer nem mesmo um crachá com seu nome estava divagando a respeito da influencia que o pensamento exercia sobre as folhas e também sobre aquele estranho mundo. Já havia lido toda a documentação existente e tirando a parte onde se deveria imaginar algo para manusear as folhas tudo mais parecia com um monte de besteiras. Eram instruções de pequenos rituais para conseguir resultados sempre iguais, mesmo assim, algumas pessoas tinham dificuldades com isto e conseguiam resultados diferentes, ou então, mais normalmente nenhum resultado. Tentando entender por que algumas pessoas tinham dificuldade para multiplicar folhas ou então pra adicionar gravuras à elas resolveu fazer seu primeiro experimento. Ele rasgou a folha ao meio imaginando três folhas ao invés de duas como resultado, e magicamente uma terceira folha apareceu. Amassou e atirou para cima, imaginando que flutuaria, e ela simplesmente flutuou. Imaginou-a caindo no chão e se transformando em uma flauta, e foi exatamente isto o que ocorreu. Uma simples flauta plástica, que mudaria o mundo conhecido para todo o sempre!

Feliz com a sua descoberta, ele correu até o clube dos cientistas e devido a ausência do crachá não queriam lhe permitir a entrada, mas, ele se impôs e anunciou-se dizendo algo que causou muito espanto e até mesmo raiva em todos os membros presentes:

---- Queimem tudo o que foi escrito até hoje a respeito das folhas! É tudo bobagem!

Cercado de cientistas furiosos prestes a expulsá-lo ou a denunciá-lo pelo hediondo crime de estar nos limites do clube sem a devida filiação, ele mostra a flauta e toca algumas notas. Perplexos os cientistas a analisaram minuciosamente e após algum tempo de profunda reflexão deduziram que ela não era feita de papel. Em seguida o bombardearam de todo tipo de perguntas:

“Plástico! Onde encontrou isto?”, “Como ousa a querer queimar tudo o que sabemos a respeito deste mundo? “, “Quem fez esta flauta?”, “Quer se filiar ao nosso clube?”

---- Eu fiz esta flauta com uma de minhas folhas. Com as folhas podemos fazer qualquer coisa! - o ser estava radiante de alegria ao pensar nas possibilidades de sua descoberta.

---- Como fez isto? - Perguntou um cientista.

---- Amassei imaginando que ela iria flutuar, e depois a imaginei caindo e se transformando em uma flauta.

---- Mas isto não encerra nosso conhecimento – Diz outro cientista – Isto apenas vai ser documentado como um maneira de fabricação de instrumentos musicais.

---- Você não entendeu? A folha reage fielmente as nossas expectativas! Por exemplo, como você faz para duplicar as folhas?

---- Simples, rasga-a ao meio e segura ambas metades conforme a documentação!

Para provar sua teoria o ser rasgou uma folha e ficou segurando, mas, estas não cresceram.

---- Você deve ser daquelas pessoas com dificuldade na multiplicação – responde o cientista ao ver uma suposta lei da física ser quebrada – isto também já está documentado e pode ser corrigido com o treinamento adequado!

O ser respirou fundo, amassou uma das metades e atirou ao chão, e esta então se transformou em uma faca, logo em seguida, jogou a outra metade que se transformou em um garfo, ambos completamente diferentes das coisas habitualmente utilizadas para produzir música.

---- Oh! - Dizem todos em coro.

Imediatamente um cientista tenta fazer o mesmo, porém ao rasgar as folhas, estas se duplicaram e ao jogar a folha amassada no chão esta se transformou em um enorme violão de papel.

---- Muito bom! – diz um outro cientista pronto para tentar também.

---- Bom nada! - o primeiro respondeu - Era para ser um violão de verdade, por que não consegui?

---- As folhas fazem o que você espera que elas façam, talvez você seja uma daquelas pessoas com dificuldade de criação de instrumentos musicais – falou o ser brincando com o cientista – deveríamos documentar isto?

Alguns cientistas conseguiam logo na primeira tentativa, outros não, mas, após treinarem um pouco, todos conseguiam reproduzir as materializações. Durante algum tempo, os honoráveis membros do clube de ciências se divertiram fazendo todo o tipo de objeto, espadas, esculturas, porta-retratos, cadeiras, e etc, até que em algum momento voltaram a perceber que um ser não pertencente ao clube estava presente.

---- Você não usa nenhum crachá permanente, não vou lhe denunciar, mas, devo perguntar qual é seu nome...

---- Cristofer! - Respondeu o ser lembrando de como era chamado em seu antigo lar.

---- E quais são seus clubes Cristofer?

---- Nenhum. Desde que as pessoas começaram a brigar por eles, perdi o interesse por suas imagens e memórias. Acho que somos todos membros de um único clube, a humanidade.

Todos estavam muito entusiasmados com a nova descoberta, mas, alguns acharam que estas informações eram perigosas demais para que todos os outros seres as conhecessem. Um dos cientistas pegou um grande maço de folhas e com elas construiu uma forte gaiola de aço.

---- Você poderia tê-la feito com uma única folha – riu Cristofer da ilusão de que para fazer coisas grandes seriam necessárias muitas folhas – Mas, para que você quer uma gaiola?

Todos os outros do clube da ciência já sabiam a resposta, cercaram o ser e tentaram aprisioná-lo para que não divulgasse sua descoberta para o mundo, mas, Cristofer conseguiu fugir e correndo para salvar sua liberdade descobriu que se fizesse um cinto com as folhas e imaginasse que flutuaria junto com elas, ele poderia realmente voar.

Foram apenas alguns instantes, mas, todas as brigas entre clubes cessaram. Todos os seres que estavam próximos o bastante para poder ver, pararam para olhar para cima e ver Cristofer fazendo acrobacias no ar.

---- Vocês podem fazer o que desejarem com suas folhas! Elas fazem exatamente o que vocês esperam que elas façam! - Gritava ele para todos enquanto ria de extrema felicidade.

Logo Cristofer sentiu vontade de voar mais alto, e usando sua prodigiosa imaginação começou a subir mais e mais. Ele já havia se tornado quase invisível para os seres, quando de repente desapareceu e por todo o céu uma gigantesca bola de fogo com todas as cores foi visto, causando um estrondo semelhante a mil trovões simultâneos.

---- Ele morreu. - diz um ser.

---- Impossível! Ninguém morre aqui! – diz outro. Mas na verdade ninguém sabia.

Logo os filósofos e cientistas chegaram a conclusão que ele havia ultrapassado uma espécie de atmosfera, levando um choque violento e se desintegrando imediatamente. Os clubes religiosos rapidamente criaram lendas a respeito do lugar maravilhoso para onde o ser voador havia sido levado, assim como rapidamente se encheram de promessas de que o ser voador voltaria no futuro para buscar os membros mais fiéis e livrá-los da presença indesejável dos outros clubes.

Os cientistas estavam com um problema depois que entenderam o que Cristofer havia descoberto. Eles concluíram que haviam muitos perigos na liberdade criativa total e decidiram bolar um plano para que mesmo sem a revelação completa da descoberta, a materialização de objetos ainda pudesse ser útil para as pessoas. Sabendo que todos esperam que as folhas funcionem de acordo com a documentação existente, inventaram formulas e processos que não impediriam o progresso da sociedade, mas, evitariam que certos limites estabelecidos fossem ultrapassados. Criaram avisos e advertências, incitando medos que por se tornarem expectativas acabariam também por se tornar realidade, impedindo que as pessoas voassem como Cristofer ou que criassem grandes objetos de apenas uma única folha.

Publicada a nova documentação com as “novas” características das folhas, e o complicadíssimo processo que as transformaria em folhas de materialização, surgiram os cursos para especializar alguns seres pré-determinados por seus clubes confiáveis em criá-las. Junto com elas renasceu o conceito de dinheiro, quem tinha folhas de materialização o bastante se tornava mais importante do que lideres de clubes, com estas novas folhas as pessoas montavam peças e com as peças montaram maquinas, casas, móveis, veículos, templos, prisões e muitas outras coisas... Alguns seres se especializaram na fabricação de certos tipos de objetos, e os vendiam em troca de mais folhas de materialização, criando diversos tipos de trabalho e grupos de consumo.

A Documentação havia ficado tão concisa que logo os próprios cientistas estavam acreditando nela, com exceção apenas de um pequeno grupo, que se manteve lembrando da verdade para impedir que outros “Crisofers” fizessem a mesma descoberta proibida.

Se Cristofer pudesse cumprir as promessas dos clubes religiosos e voltar para aquele mundo, encontraria um lugar completamente diferente do que deixou. Haviam carros e aeronaves por toda a parte, tecnologia para comunicação a distancia entre clubes, armas incendiarias e uma guerra incessante. Simples prisões não eram o suficiente para a quantidade de crimes cometidos, então formou-se uma gigantesca pilha de gaiolas de aço, que podia ser vista de qualquer distancia naquele incrível mundo plano, dentro delas, pessoas que queriam impor seus pensamentos compartilhavam seu sofrimento com pessoas que não quiseram aceitar os pensamentos de outros. Alguns destes criminosos que apenas se tornaram um perigo ao descobrirem a simplicidade do poder das folhas, foram tatuados com os símbolos dos clubes mais odiados e já banidos para que ninguém quisesse ouvi-los, e depois disto aprisionados e silênciados em meio a multidão.

Os clubes foram se tornando tão diferentes entre si, que de acordo com a cor do tapete em que se pisava, alguma coisa poderia, ou não ser considerada um crime. O problema do encarceramento se tornou tão grande, que os cientistas bolaram uma forma de erradicar os criminosos mais graves ao invés de simplesmente guardá-los. Era uma grande catapulta, construída com milhares de folhas de materialização devidamente fabricadas pelos especialistas. Com a catapulta os criminosos eram arremessados até o ponto do céu em que explodiam. Já havia passado tanto tempo desde que o ser voador explodiu no mesmo ponto do céu que ninguém fazia menção de dizer que os supostos criminosos estariam indo para o mesmo lugar maravilhoso que o suposto messias, na verdade, já havia muito tempo desde que ninguém se questionava o que aconteceu com o ser voador e apenas esperavam que um dia ele enjoasse do paraíso e viesse buscar os outros.

Ao explodir no topo do céu vazio, Cristofer simplesmente havia acordado no meio de um planeta adormecido. Ele estava em sua própria casa e nem imaginava que seus vizinhos estavam dormindo também, sonhando a mesma loucura que ele ainda recordava em pequenos fragmentos. Na medida em que os criminosos eram enviados para o topo do céu, o planeta Terra foi despertando. Motoristas ligaram seus carros, empregados fieis se condenavam por terem dormido no exercício de suas funções, e logo, quando muitos já haviam aberto os olhos na velha Terra, um ponto dourado muito brilhante surgiu nos céus do novo mundo sem que nenhum criminoso tivesse sido desintegrado, de início as pessoas acreditaram que era o ser voador vindo salvá-los de si próprios, mas, era apenas uma bola de fogo que desceu dos céus e despertou a todos simultaneamente. Em alguns pontos do planeta ainda era noite e as pessoas simplesmente voltaram a dormir. Em outros, pessoas tentavam lembrar e entender o que havia acontecido, mas, logo esqueceram do assunto e voltaram a suas vidas tão diferentes umas das outras. Hoje, quase ninguém lembra deste dia, e os que ainda lembram não fazem questão nenhuma de comentar a respeito para não serem tomados por loucos. Infelizmente nada foi aprendido, e nada mudou em nossa velha Terra.

As pessoas continuaram sendo todas iguais, mesmo tendo esquecido do fato.

=NuNuNO== Griesbach

(Que olhando para uma folha de papel, entendeu que o infinito são todas as imagens que ela não contém )

PS: Ao ler este texto, você lembrou de alguém?

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 09/03/2014
Código do texto: T4721764
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.