Tímido amor

                        "O desgosto pode tomar conta de si próprio, mas para tirar partido de uma alegria, temos de ter alguém com quem partilhar".  Mark Twain


 
                        Todo jovem sente o estalo do amor. Esta emoção maravilhosa vem tão forte que  o jovem chega a ouvir o estalo.            
                        E aí desorganiza tudo. Ficamos sem ar, o  pensamento estaciona na amada e não tem  doutor que dê jeito. O pensamento emperra nela.   Provoca suor frio, pode dar febre, tonteira. Instala-se o caos. E neguinho só pensa em se atracar com a amada, só sossega grudado nela.
                        Não sei quantas vezes dá esse estalo na flor quando desabrocha. Mas posso garantir que no ser humano esse estalo se dá várias vezes durante a vida. Às vezes  o amor é tão profundo que, de início, não percebemos. Ele vem lá do fundo da alma. E acaba  provocando  o mesmo desassossego do jovem.  
                        Uma pena que na idade madura os preconceitos e as “normas” da sociedade acabem por sufocar  muitos  amores que seriam maravilhosos.
                        E o bom é que o amor tem suas gradações: tem o amor sereno, meio mineiro. O amor ousado, quente, meio devasso, tipo carioca. O amor tímido, que nunca se declara. Não sei a naturalidade desse amor, talvez amor caipira.  Recordo-me que acompanhei um amor tímido. O cara se chamava Freitas Pinto. Apesar do Pinto no nome, nunca avançou o sinal. Sei bem desse caso, pois foi comentadíssimo lá na minha casa, quando eu era ainda menino.  O Freitas Pinto apaixonou-se pela minha avó materna Sylvia, que era viúva, ainda bem nova.  Ela dizia que nunca mais se casaria, pois não teve o seu casamento lá muito feliz. Ela era voluntariosa e quando decidia uma coisa não mudava de ideia de jeito nenhum. O Freitas Pinto deu azar: foi apaixonar-se logo por uma pessoa assim e com o agravante de ser tímido. O pobre do homem levou trinta anos frequentando a casa da vovó, que o recebia muito bem, com uma educação refinada. Conversavam, conversavam e tomavam chá com biscoitos. Praticamente, todas as noites. E ele ficava quietinho bem do lado da vovó, praticamente em êxtase!  Às vezes, eu dizia pro papai: "hoje, ele se declara, aposto! " Mas nunca se declarou, faltou coragem... A vovó não estava nem aí para a paixão do Freitas Pinto, não sentia nada. Quer dizer: sentia uma grande amizade, como ela me disse muitas vezes. Ela era leitora do sarcástico Molière e se lembrava sempre de uma passagem da peça “O doente imaginário”.  Na época eu tinha muito medo de fantasmas e ela me dizia que eu deveria ter medo era de gente viva e chegava a interpretar uma pequena parte da peça do Molière, só pra provar que não se podia confiar no ser humano.
Antes de terminar este meu conto, penso que meus amigos vão gostar da citação do teatro do francês. Afinal, estou cultivando o bom humor. Vamos lá então:
“Cena 7:
 
ARGAN – Querida.
BELINHA – Se eu tiver a infelicidade de perder você...
ARGAN – Minha mulherzinha.
BELINHA – Viver será inútil.
ARGAN – Meu amor.
BELINHA – Morro junto para que saiba o carinho que tenho por você.
ARGAN – Você me parte o coração, amor. Não chore, por favor.
TABELIÃO – As lágrimas estão fora de hora, as coisas ainda não estão neste ponto.
BELINHA – Ah... não sabe o que é ter um marido a quem se ama tanto.
ARGAN – Só lamento, se eu morrer, é de não ter tido um filho seu, querida. DR. PURGAN me
prometeu que ele me faria lhe ter um.
TABELIÃO – Isso ainda pode acontecer.
ARGAN – Quero fazer o testamento, meu amor, do jeito que o Tabelião diz; mas, por precaução, vou
lhe dar vinte barras de ouro que eu escondi no forro do meu quarto, e duas promissórias ao portador,
uma do Sr. Damon e outra do Sr. Geronte.
BELINHA – Não, não. Não me interessa nada. Ai de mim. Quanto você disse que tinha no quarto?
ARGAN – Vinte barras, amor.
BELINHA – Não me fale mais nisso, eu te peço. E de quanto são as promissórias?
ARGAN – Uma de quatro e outra de seis, querida.
BELINHA – Todo o dinheiro do mundo, querido, é nada perto de ter você. Tem mais barras
escondidas?
TABELIÃO – Quer que façamos o testamento?
ARGAN – Sim, senhor. Vamos ao meu escritório. Me leve, meu amor.
BELINHA – Vamos, queridinho.”
                    

                    Este autor provocou um ceticismo absoluto em minha avó, infelizmente.  Segundo a família parece que ela teve suas razões...
                        Hoje, eu calculo como deve ter sido sofrido para o Freitas Pinto esse amor.  Eu, no lugar dele, teria me desesperado, teria brigado, xingado a velha, teria feito o diabo. A coisa que sempre me dava  a  maior raiva era  eu estar interessado num bom amor e a mulher vir com essa conversinha de  amizade. Sinceramente, eu xingo logo. Tô certo, mermão? Bem, mas acho que o leitor amigo e a leitora amiga devem estar interessados como terminou o caso Freitas Pinto. Lamento dizer que ficou nessa lenga-lenga, chá e biscoito pra cá, chá e biscoito pra lá e ...   Isso mesmo, o Freitas Pinto acabou morrendo. 
                        A  família toda foi ao enterro dele, inclusive a vovó, no cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio.  Papai fez um belo discurso na lápide do Freitas Pinto e insinuou, o que todo mundo sabia, o grande amor do Freitas Pinto pela vovó.  E chegou até piscar o olho, com malícia. Já sei o que estão querendo perguntar: -  e a reação da sua avó, depois do discurso?  Respondo: - nenhuma, me pediu para chamar um táxi, pois já estava quase na hora de tomar o chazinho dela!
                       


       
 
 
Nota:  Este é um conto antigo, de 2011, e lido por meia dúzia de pessoas.  Claro, o Ciro, Elenite, Seminale e o Paulo Rego leram, mas alerto aos amigos que aumentei o conto , para que o texto não deixasse de interessar aos que leram. A cena do Molière foi um desses acréscimos.
Gdantas