ÉBRIO OU LEPO, LEPO?

O tempo passa e os avanços científicos e tecnológicos modificam as pessoas e seus costumes. Na década de 60 as crianças brincavam, entre outras coisas, de roda e de tudo quanto é tipo de pique: “alto”, “bandeira”, “esconder”... Os folguedos aconteciam nas ruas, onde havia pouquíssimos carros. O gasto energético era tanto que vivíamos famintos, ávidos por ganhar ou por roubar mangas, carambolas, goiabas e cajás nas chácaras dos vizinhos.

Apesar das recomendações e dos cuidados de nossos pais, quase todos nós pegamos bichos nos dedos dos pés (porque gostávamos de andar descalços), tivemos de tomar óleo de rícino (dentro do saco de estopa. Rs,rs,rs...) para matar as lombrigas que nos infestavam, e fomos forçados a extrair os dentes “panelados” pela falta de flúor na água ou de escovação mesmo.

Quase todos nós tínhamos avós ou tios proprietários rurais, a quem adorávamos visitar para tomarmos banho em rios, nos entupir de outras frutas ou para brincar com os bois, cavalos, porcos, galinhas, garnisés, “tô fracos”.. a que queríamos abraçar e tratar como aos cachorros, gatos e passarinhos, que tínhamos em nossas casas.

No carnaval, nós nos mascarávamos e íamos para as ruas em “blocos de sujos”, ou nos fantasiávamos para irmos aos clubes, rodar pelos salões cantando marchinhas com os dedos indicadores levantados. Lembro-me da alegria que invadia o salão, quando, repentinamente, um trombone puxava um frevo ou a orquestra tocava “Cidade Maravilhosa, cheia de encantos mil, cidade maravilhosa, coração do meu Brasil...”.

Hoje, tudo isso é muito raro. A maioria das crianças vive à frente das TVs ou computadores, “facebookeando” ou jogando vídeo game. Outras brincadeiras limitam-se aos playgrounds ou aos quintais, pois a rua pertence aos carros e às motocicletas. Muitos estão pré-obesos, pois a solidão os impele a se entupirem de alimentos calóricos, tais como biscoitos recheados e cheetos.

Creio que os bichos de pés foram todos extintos nas cidades, assim como os ascaris lumbricoides, as taenia soliums e os oxiúros. Da mesma forma, o flúor disponível na água encanada e o fácil acesso aos cremes dentais têm impedido que a criançada e a juventude experimente ou ouça o som maldito dos motorzinhos que nos atormentaram, enquanto retiravam nossas cáries. Hoje em dia, nas grandes cidades, muitas crianças não conhecem pomares e nunca viram ou tocaram em um boi, cavalo, porco ou em uma galinha.

Preocupados com esse fato e sabedores de que o Rio de Janeiro é extremamente barulhento no período de momo, Juninho e Letícia, moradores da rua Visconde de Pirájá, decidiram que o carnaval de 2014 poderia ser a oportunidade de apresentar todas essas coisas para o pequeno Arthur, de dois aninhos.

Via internet, resolveram comprar um pacote, de quinta à quinta-feira, para um hotel fazenda em Saquarema e para lá eles rumaram na data prevista. O lindo lugar ficava em uma espécie de “buraco”, rodeado de montanhas, o que impedia a chegada de brisas, tornando a temperatura bastante desagradável. Esporadicamente se ouviam mugidos, relinchos, cacarejos ou chilreios, provenientes de vacas, cavalos, galinhas e passarinhos “invisíveis”, ou, talvez, estivessem escondidos atrás dos morros.

Na sexta-feira, logo pela manhã, chegaram quatro ônibus de excursões, totalizando uns 160 septa, octo e nonagenários. Após o check in, eles acabaram com o café da manhã, e, rapidamente, ocuparam, as únicas 10 mesas, 10 sombrinhas e 10 espreguiçadeiras, que havia na pérgula da piscina. Um deles ligou um aparelhinho potente de som e todos passaram a ouvir e a cantar músicas como: “Tornei-me um ébrio e na bebida....”, “ Disse o campônio à sua amada, minha idolatrada...”, “Eram duas caveiras que se amavam...”, “ O maior golpe do mundo que eu tive na minha vida...”

A decisão era difícil: ficar trancado dentro do quarto usufruindo a temperatura do ar condicionado x subir as montanhas com Arthur nas costas para tentar apresentar-lhe os bichinhos x dormir na pérgula com “mala e cuia” para garantir uma sombrinha e duas espreguiçadeiras na manhã seguinte x acostumar os ouvidos ao gosto musical da maioria.

O dilema durou pouco: no sábado pela manhã, Letícia e Juninho apresentaram todos os “bichinhos” ao Arthur por meio de vídeos do Youtube. À noite, apesar de fecharem todas portas e janelas, eles foram “obrigados” a ouvir umas 50 vezes, o som que vinha do apartamento de um vizinho “sem noção”: o hit da banda Psirico. Nos dias seguintes, Arthur cantava ininterruptamente: “Rá rá rá rá rá rá rá, Epo, Epo! Rá rá rá rá rá rá rá, o Epo, Epo.....

Correr do “ébrio” e cair no “lepo-lepo”... Ninguém merece!!

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 13/03/2014
Reeditado em 14/03/2014
Código do texto: T4727284
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