Perpétuo-Mais-Que-Perfeito.

Muito antes dos brinquedos chineses chegarem ao Brasil, Troll, Atma, Glasslite, Gulliver e Estrela eram marcas ¨Top of (litlle) minds¨ no mundo infantil dos anos 70. Eu conhecia todos os brinquedos pelos reclames veiculados nos intervalos dos desenhos animados. Os publicitários já nessa época eram sádicos com as crianças pobres. Ferrorama, playmobil, forte-apache, aquaplay, autorama do Emerson Fittipaldi...a lista é imensa. Mas eu adquirira uma certa imunidade.

O quintal de casa era compartilhado com mais quatro famílias, uma espécie de condomínio fechado de pobre. Eram todas casas de aluguel pertencentes a uma grande família de portugueses que detinha, no total, mais da metade das casas da rua. E nesse “condomínio” havia famílias com variados graus de pobreza. A do vizinho farmacêutico era da classe pobre alta (seria da classe média-baixa se não estivesse num segundo casamento, e não tivesse uma penca de filhos). A do vizinho caminhoneiro era da classe pobre-média. Já nossa família era da classe pobre purinha mesmo. Foi nessa época que resolvi perguntar pro pai, por que o Ricardo (filho único do caminhoneiro) brincava com carrinhos bonitos, enquanto eu brincava com tocos de madeira. O pai, com seu jeito simples, me explicou que não poderia me comprar um novo brinquedo, toda vez perdesse ou quebrasse o antigo, e além disso ele gostaria que eu aprendesse a olhar para o toco e ver nele o carro que quisesse: corcel, fusca, maverick...bastasse que eu usasse a imaginação... O pai explicou também, de acordo com sua percepção singela da vida, que imaginação era algo como ter uma visão-além-dos-olhos. Se dominasse essa técnica, poderia virar até um “reclamista” (criador de reclames).

O pai era uma pessoa com muita imaginação. Se os pais mais instruídos explicavam o mundo a seus filhos, ao meu, semi-analfabeto, não restava outro remédio senão inventar, criar um mundo para seus rebentos. Contudo, ele não nos enganava respondendo nossas perguntas sobre coisas que ele mesmo não conhecia. Ele nos maravilhava com construções imagéticas incríveis, preenchendo os buracos de seu (e nosso) conhecimento com estórias fantasticamente reais, ou realmente fantásticas. Nas manhãs de domingo, enquanto a mãe já bem cedo lidava com o coador de pano e o café Seleto na cozinha, a filharada se amontoava em volta do pai na cama, para ouvir suas fábulas, estórias, teorias e memórias. No almoço do domingo não faltava à mesa o frango, o macarrão, a garrafa de Tubaína (que enchia de alegria nossos copos reciclados de extratos de tomate Cica e Etti), e a coletiva de imprensa mirim fazendo milhares de perguntas ao velhão.

O fato foi que, quer porque herdasse dele a imaginação fértil, quer porque seguisse mais fielmente seus conselhos sobre a visão-além-dos-olhos, passei a transformar pedras, paus e diversos cacarecos em estupendos brinquedos. Assim, a tampa da lata de leite Ninho se transformava no disco voador de Perdidos no Espaço. Saco de papel se transformava na máscara do Batman. Toalha velha dava uma excelente capa do Super-homem. Graveto jogado na bacia do banho virava o submarino de Viagem ao Fundo do Mar. Aviões de papel se incorporavam em caças do Capitão Escarlate. Tigela velha virava aquário para “peixinhos” que eu encontrava pela rua (mas quando as patinhas traseiras começavam a aparecer, a mãe me obrigava acabar a brincadeira).

Com a visão-além-dos-olhos eu conseguia manipular mentalmente quaisquer formas, aperfeiçoá-las nos detalhes, descobrir as potencialidades do vazio, moldar o invisível, plasmar o imaginável. Muito tardiamente eu me dera conta que meu pai me legara a habilidade de conjugar o perpétuo-mais-que-perfeito. Eu era o meu próprio verbo.

Anos mais tarde, já no Colegial, colegas e professores elogiavam minha imaginação e me aconselhavam a seguir a carreira de publicitário. Mas fiz faculdade de História, pois não cogitava servir aos que preenchem a cabeça das crianças (e adultos) de desejos pelo supérfluo (muitas vezes inacessível). Seria como usar a visão-além-dos-olhos para o mal. Ao contrário, poupei o meu “dom” para coisas muito mais importantes.

Atualmente, algumas poucas vezes ao ano a família se reúne em peso em almoços de domingo. E nessas ocasiões a visão-além-dos-olhos me é extremamente útil. Com ela consigo transformar os copos Nadir Figueiredo da mãe em pequenos copinhos da Cica ou da Etti. Com ela consigo transmutar a garrafa pet de dois litros de Coca-cola numa garrafa de vidro amarronzado de Tubaína. E o mais importante: com a visão-além-dos-olhos eu consigo preencher uma cadeira vazia com a presença do pai, contando seus “causos” e suas estórias.

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Mais recentemente venho observando meu filho de cinco meses. Algumas vezes ele parece manusear o ar e rir. Noutras, fixa um olhar curioso para um canto vazio do quarto, esboçando uns sorrisos.

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Para os próximos anos já estou me programando para ministrar um intensivo curso de visão-além-dos-olhos para o meu guri. Quero garantir que ele me veja presente em todos os almoços de família de sua vida.

Gilberto Messias
Enviado por Gilberto Messias em 03/05/2007
Reeditado em 03/05/2007
Código do texto: T473713