Recordando Millôr


Amanhã, 27 de março, completaremos dois anos de ausência de Millôr Fernandes. De fato, com sua morte em 2012, aos 88 anos, Millôr abriu uma irreparável lacuna na cultura e na inteligência do país. Não que ele desse lá muita importância a isso, como deixara claro já em 1984 no seu “Poeminha com saudade de mim mesmo:
Quando eu morrer
vão lamentar minha ausência
Bagatela
pra compensar o presente
em que ninguém dá por ela”.

Nascido Milton Viola Fernandes, no Rio de Janeiro, começou bem cedo na antiga revista ‘O Cruzeiro’ onde, sob o pseudônimo de Vão Gogo, durante largo tempo manteve a seção Pif-Paf.

Por mais de setenta anos Millôr transitou por publicações que vão de O Pasquim até a Revista Veja, e construiu uma vasta e diversificada obra que compreende uma porção de livros com prosa da melhor qualidade, peças teatrais e inúmeras traduções, além de incursionar com êxito pelas artes gráficas, desenho, música, poesia, o diabo a quatro. Ninguém melhor do que ele se exprimiu igualmente bem tanto na sátira, como na ironia e no humour inteligente.

Para recordar Millôr escolhemos o texto a seguir, extraído de seu livro ‘Crítica da razão impura ou O primado da ignorância’, de 2002, 2ª ed. Porto Alegre, L&PM, onde ele elabora (p.47 – 58) crítica literária com muita competência e, como sempre, com sua verve peculiar. Aqui o objeto (ou vítima) de sua análise é a obra de FhC Dependência e Desenvolvimento na América Latina.

LIÇÃO PRIMEIRA

De uma coisa ninguém podia me acusar -- de ter perdido meu tempo lendo FhC (superlativo de PhD). Achava meu tempo melhor aproveitado lendo o Almanaque da Saúde da Mulher. Mas quando o homem se tornou vosso Presidente, achei que devia ler o Mein Kampf (Minha Luta, em tradução literal) dele, quando lutava bravamente, no Chile, em sua Mercedes ("A mais linda Mercedes azul que vi na minha vida", segundo o companheiro Weffort, na tevê, quando ainda não sabia que ia ser Ministro), e nós ficávamos aqui, numa boa, papeando descontraidamente com a amável rapaziada do Dops-DOI-CODI.

Quando, afinal, arranjei o tal Opus Magno -- Dependência e
Desenvolvimento na América Latina -- tive que dar a mão à palmatória. O livro é muito melhor do que eu esperava. De deixar o imortal Sir Ney
morrer de inveja. Sem qualquer partipri [1], e sem poder supervalorizar a obra, transcrevo um trecho, apanhado no mais absoluto acaso, para que os leitores babem por si:

"É evidente que a explicação técnica das estruturas de dominação, no
caso dos países latino-americanos, implica estabelecer conexões que se
dão entre os determinantes internos e externos, mas essas vinculações,
em que qualquer hipótese, não devem ser entendidas em termos de uma relação "casual-analítica", nem muito menos em termos de uma
determinação mecânica e imediata do interno pelo externo. Precisamente o conceito de dependência, que mais adiante será examinado, pretende outorgar significado a uma série de fatos e situações que aparecem conjuntamente em um momento dado e busca-se estabelecer, por seu intermédio, as relações que tornam inteligíveis as situações empíricas em função do modo de conexão entre os componentes estruturais internos e externos. Mas o externo, nessa perspectiva, expressa-se também como um modo particular de relação entre grupos e classes sociais de âmbito das nações subdesenvolvidas. É precisamente por isso que tem validez centrar a análise de dependência em sua manifestação interna, posto que o conceito de dependência utiliza-se como um tipo específico de "causal-significante' -- implicações determinadas por um modo de relação historicamente dado e não como conceito meramente "mecânico-causal", que enfatiza a determinação externa, anterior, que posteriormente produziria 'consequências internas' ".

Concurso - E-mail:

Qualquer leitor que conseguir sintetizar, em duas ou três linhas (210
toques), o que o ociólogo preferido por 9 entre 10 estrelas da
ociologia [2] da Sorbonne quis dizer com isso, ganhará um exemplar do
outro clássico, já comentado na primeira parte desta obra: Brejal dos
Guajas -- de José Sarney.

LIÇÃO SEGUNDA

Como sei que todos os leitores ficaram flabbergasted (não sabem o que
quer dizer? Dumbfounded, pô!) [3] com a Lição primeira sobre Dependência e Desenvolvimento da América Latina, boto aqui outro trecho – também escolhido absolutamente ao acaso -- do Opus Magno de gênio da "profilática hermenêutica consubstancial da infra estrutura
casuística", perdão, pegou-me o estilo. Se não acreditam que o trecho
foi escolhido ao acaso, leiam o livro todo. Vão ver o que é bom!

Estrutura e Processo: Determinações Recíprocas

"Para a análise global do desenvolvimento não é suficiente,
entretanto, agregar ao conhecimento das condicionantes estruturais a
compreensão dos 'fatores sociais', entendidos estes como novas
variáveis de tipo estrutural. Para adquirir significação, tal análise
requer um duplo esforço de redefinição de perspectivas: por um lado,
considerar em sua totalidade as 'condições históricas particulares' --
econômicas e sociais -- subjacentes aos processos de desenvolvimento no plano nacional e no plano externo; por outro, compreender, nas
situações estruturais dadas, os objetivos e interesses que dão
sentido, orientam ou animam o conflito entre os grupos e classes e os
movimentos sociais que 'põem em marcha' nas sociedades em
desenvolvimento. Requer-se, portanto, e isso é fundamental, uma
perspectiva que, ao realçar as mencionadas condições concretas -- que
são de caráter estrutural -- e ao destacar os móveis dos movimentos
sociais -- objetivos, valores, ideologias --, analise aquelas e estes em
suas relações e determinações recíprocas. (...) Isso supõe que a análise
ultrapasse a abordagem que se pode chamar de enfoque estrutural,
reintegrando-a em uma interpretação feita em termos de 'processo
histórico' (1). Tal interpretação não significa aceitar o ponto de
vista ingênuo, que assinala a importância da sequência temporal para a
explicação científica -- origem e desenvolvimento de cada situação
social -- mas que o devir histórico só se explica por categorias que
atribuam significação aos fatos e que, em consequência, sejam
historicamente referidas.

(1) Ver, especialmente, W. W. Rostow, The Stages of Economic Growth,
A Non-Communist Manifest, Cambridge, Cambridge University Press, 1962; Wilbert Moore, Economy and Society, Nova York, Doubleday Co., 1955; Kerr, Dunlop e outros, Industrialism and Industrial Man, Londres,
Heinemann, 1962."

Comentário do Millôr, intimidado:

A todo momento, conhecendo nossa precária capacitação para entender o objetivo e desenvolvimento do seu, de qualquer forma, inalcançável
saber, o professor FhC faz uma nota de pata de página. Só uma
objeçãozinha, professor. Comprei o seu livro para que o senhor me
explicasse sociologia. Se não entendo o que diz, em português tão
cristalino, como me remete a esses livros todos? Em inglês! Que o
senhor não informa onde estão, como encontrar. E outra coisa,
professor, paguei uma nota preta pelo seu tratado, sou um estudante
pobre, não tenho mais dinheiro. Além do que, confesso com vergonha,
não sei inglês. Olha, não vá se ofender, me dá até a impressão, sem
qualquer malícia, que o senhor imita um velho amigo meu, padre que
servia na Paróquia de Vigário-Geral, no Rio. Sábio, ele achava inútil
tentar explicar melhor os altos desígnios de Deus pra plebe ignara do
pequeno burgo e ensinava usando parábolas, epístolas, salmos e
encíclicas. E me dizia: "Millôr, meu filho, em Roma, eu como os
romanos. Sendo vigário em Vigário-Geral, tenho que ensinar com
vigarice".

LIÇÃO TERCEIRA

Há vezes, e não são poucas, em que FhC atinge níveis insuperáveis.
Vejam, pra terminar esta pequena explanação, este pequeno trecho ainda escolhido ao acaso. Eu sei, eu sei -- os defensores de FhC, a máfia de beca, dirão que o acaso está contra ele. Mas leiam:

"É oportuno assinalar aqui que a influência dos livros como o de
Talcot Parsons, The Social System, Glencoe, The Free Press, 1951, ou o de Roberto K. Merton, Social Theory and Social Structure, Glencoe, The Free press, 1949, desempenharam um papel decisivo na formulação desse tipo de análise do desenvolvimento. Em outros autores enfatizaram-se mais os aspectos psicossociais da passagem do tradicionalismo para o modernismo, como em Everett Hagen, On the Theory of Social Change, Homewood, Dorsey Press, 1962, e David MacClelland, The Achieving Society, Princeton, Van Nostrand, 1961. Por outro lado, Daniel Lemer, em The Passing of Traditional Society: Modernizing the Middle East, Glencoe, The Free Press, 1958, formulou em termos mais gerais, isto é, não especificamente orientados para o problema do desenvolvimento, o enfoque do tradicionalismo e do modernismo como análise dos processos de mudança social".

Amigos, não é genial? Vou até repetir pra vocês gozarem (no bom
sentido) melhor: "formulou (em termos mais gerais, isto é, não
especificamente orientados para o problema do desenvolvimento) o
enfoque (do tradicionalismo e do modernismo) como análise (dos
processos de mudança social)".

Formulou o enfoque como análise!

É demais! É demais! E sei que o vosso sábio governando, nosso FhC,
espécie de Sarney barroco-rococó, poderia ir ainda mais longe.

Poderia analisar a fórmula como enfoque.

Ou enfocar a análise como fórmula.

É evidente que só não o fez em respeito à simplicidade de estilo.

Tópico avulso sobre imodéstia e pequenos disparates do eremita
preferido dos Mamonas Assassinas.

Vaidade todos vocês têm, não é mesmo? Mas há vaidades doentias, como as das pessoas capazes de acordar às três da manhã para falar dois minutos num programa de tevê visto por exatamente mais ou menos ninguém. Há vaidades patológicas, como as de Madonas e Reis do Roque, só possíveis em sociedades que criaram multidões patológicas.

Mas há vaidades indescritíveis. Vaidade em estado puro, sem retoque
nem disfarce, tão vaidade que o vaidoso nem percebe que tem, pois tudo que infla sua vaidade é para ele coisa absolutamente natural. Quem é supremamente vaidoso, se acha sempre supremamente modesto. Esse ser existe materializado em FhC (superlativo de PhD). Um umbigo delirante.

O que me impressiona é que esse homem, que escreve mal -- se aquilo é escrever bem o meu poodle é bicicleta -- e fala pessimamente -- seu
falar é absolutamente vazio, as frases se contradizem entre si, quando
uma frase não se contradiz nela mesma, é considerado o maior sociólogo brasileiro.

Nunca vi nada que ele fizesse (Dependência e Desenvolvimento na
América Latina, livro que o elevou à glória, é apenas um Brejal dos
Guajas, mais acadêmico) e dissesse que não fosse tolice primária.
"Também tenho um pé na cozinha", "(os brasileiros) são todos
caipiras", "(os aposentados) são uns vagabundos", "(o Congresso)
precisa de uma assepsia", "Ser rico é muito chato", "Todos os
trabalhadores deviam fazer checape", "Não vou transformar isso (a
moratória de Itamar) num fato político". "Isso (a violência, chamada
de Poder Paralelo) é uma anomia" [4]. E por aí vai. Pra não lembrar o
vergonhoso passado, quando sentou na cadeira da prefeitura de São
Paulo, antes de ser derrotado por Jânio Quadros, segundo ele "um
fantasma que não mete mais medo a ninguém".

Eleito prefeito, no dia seguinte Jânio Quadros desinfetou a cadeira
com uma bomba de Flit.

E, sempre que aproxima mais o país do abismo no qual, segundo a
retórica política, o Brasil vive, esse FhC (superlativo de PhD) corre
à televisão e deita a fala do trono, com a convicção de que, mais do
que nunca, foi ele, the king of the black sweetmeat made of coconuts
(o rei da cocada preta), quem conduziu o Brasil à salvação definitiva
e à glória eterna. E que todos querem ouvi-lo mais uma vez no Hosana e
na Aleluia. Haja!

Millôr Fernandes

Notas deste escrevinhador:

[1] Partipri = Parti pris (locução) que significa opinião adrede assumida, de modo preconcebido ou tendencioso.

[2] Ociologia = palavra inventada por Millôr, supostamente para caracterizar a sociologia do ócio. Por analogia, ociólogo é o iniciado ou praticante da ociologia.

[3] Flabbergasted = espantado, boquiaberto, perplexo, estupefato.
Dumbfounded = embasbacado, pasmo, surpreendido; de dumb = mudo, calado, taciturno, e founded = apoiado, baseado. Equivalente a Dumbstricken (como na locução ‘to stricke dumb = emudecer de susto) e dumbstruck, onde struck = chocado, perplexo.

[4] Anomia = substantivo feminino. 1. Ausência de lei ou regra; anarquia. 2. Estado da sociedade no qual os padrões normativos de conduta e crença têm enfraquecido ou desaparecido. 3. Condição semelhante em um indivíduo, comumente caracterizada por desorientação pessoal, ansiedade e isolamento social. 4. Medicina Perda da faculdade de dar nome aos objetos ou coisas ou de reconhecer e lembrar seus nomes. (Transcrição conforme Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, ano 2002).