Piruca - O iluminado

Todo bom bebedor de cachaça deveria conhecer o meu amigo Piruca, ouvir os seus conselhos e avaliar a sua sabedoria: Iluminou-se atravéz dos copos desta bebida.

A iluminação, o caminho que nos conduz à iluminação, é a mais árdua de todos as estradas:

Paciência, meditação, jejum, cânticos, louvores e amor à natureza.

Poetas se iluminaram pela poesia, musicos pela música, o religioso pela fé e obras que os aproximaram de deus: É uma conquista do espírito.

Piruca iluminou-se pela bebida. Noites e madrugadas observando copos de aguardente.

Por isso todos deveriam conhecer o meu iluminado amigo Piruca: Os monges do Budismo, os moralistas do Confucionismo, e até os meus queridos monges Beneditinos.

Conhecí esta pessoa admirável na minha primeira juventude, no tempo da elegancia e quando Vitoria era repleta de bom gôsto.

Nunca ví um povo mais distinto que as pessoas do Espirito Santo daquela época. Por onde se ia, tudo transpirava dignidade e refinamento.

Lapidei o meu espírito estre aquelas pessoas maravilhosas, entre o mar, e as montanhas dos Italianos, Alemães e Polonoses, e muitos povos que alí procuraram o sonho de viverem em paz.

Poucos sabem que naquele estado, encontra-se a maior diversidade de povos que se concentram no Brasil, e todos foram bem recebidos, e vivem na mais sagrada harmonia.

Foi neste lugar de toda alegria, que eu encontrei o meu amigo Piruca, em uma mesa de bar, tocando um sambinha sincopado.

Nasceu para ser artista, e dos melhores, mas a sorte não ajudou tampouco ele se importou com este negócio de ser artista célebre. O que Piruca queria na verdade era viver, encantar e cantar o samba de uma nota só, chega de saudade e Carolina.

Não sei porque os seus olhos lacrimejavam ao cantar Carolina. Dizia que era uma musica expressiva, e uma poesia que estremece o coração daqueles que vivem a vida da janela, e quando acordam, percebem que a existencia humana é névoa, e qua cada momento tem que ser acariciado, cada minuto abençoado e todo instante louvado. A vida é para ser lambida até a ultima gôta.

Dizia que esta musica é um hino existencial. Piruca tambem filosofa!

Às vezes eu ficava observando ele tomar a cachaça. Queria descobrir o mistério de ve-lo sempre bebendo e o copo dele sempre cheinho.

Ele arregalava os olhos aparentando uma sêde implacavel. A pose era da mais fina performance de um ator de dramaturgia.

Eu via ele abrir a boca, respirar e prender a respiração, e deslocar o líquido do copo diretamente para a garganta.

Eu ficava pasmo! Cheguei a observar a sua lingua aplainar nervosamente por cima do lábio inferior para receber aquela benção, aquele licor divino, vermelhinho, que o cipó cravo empresta à aguardente, para ativar o olhar.

Este olhar conecta a papila, fazendo o cérebro liberar os hormônios da alegria, que inunda todo o conjunto humano, corpo e alma, a um intenso momento de felicidade.

Tudo isso eu via no olhar do Piruca: A mais completa alegria, um iluminamento.

Cheguei a ver o terceiro olho plenamente, no mais perfeito estado de graça, próprio dos grandes avatares.

Concluída a minha estranha curiosidade e me dar por satisfeito, feliz ao ver o estado de encantamento do amigo, eis que ele deposita o copo em cima da mesa, com o copo o líquido, sem uma gota a mais ou de menos.

Na verdade o que ele bebia, "levei vinte anos para decifrar este enigma", era o espírito da cachaça e o aroma místico do cipó cravo.

Decifrei mas nunca entendí esta relação transcendental entre o homem e a bebida, ou o Piruca e o cipó cravo.

Ia além da minha imaginação, verificar pela manhã que o copo estava cheio, vermelhinho. Só não existia alí o espirito do alcool que fora evaporado por inalação nasal pelo Piruca, ou absorvido por alguma "entidade" de plantão.

Está lá. A bondade espiritual não lhe permite matar um mosquito, daí a dengue, os calafrios...

O samba rejuvenesce ao seu toque. a finura de espirito toma assento. E a bebida é servida, para que a essência seja sorvida homeopaticamente pelos "canais sutis" deste iluminado guru.

"Aos belos de espírito"