Nas dobras do ser

Maria nos deixou recentemente, vítima de um atropelamento. Atravessava a Avenida Central. Impressionada com a beleza das rosas do canteiro, foi esmagada por um caminhão que transportava lixo. A pobre mulher de 58 anos deixou a vida em uma tarde quente. Seu corpo, mutilado, atraiu uma multidão ao seu redor.

Seu rosto ainda mostrava marcas do calor e uma expressão de contentamento. Era a expressão do último e tardio êxtase. O encontro com a beleza parece que lhe proporcionara uma morte feliz. Os lábios apresentavam um riso fugido ou roubado. Uma expressão que não pudera existir completamente, mas que se manteve presente. Um anjo talvez ficou com dó de Maria e a deixou com essa sensação ao cabo da vida.

Olhando para ela, percebi em sua pele um tom amarelado, marca de uma existência sofrida. Não pude definir se fora uma existência triste, mas parecia que fora uma existência no essencial da carne e do sonho. Aquele amarelo trazia consigo toda a dureza, toda necessidade, toda agonia de uma vida de privações. Acho que nunca havia sido tão atenciosamente admirada como na hora da morte.

As pessoas, ávidas por informações, cochichavam ao redor do corpo. Pareciam um bando de aves agourentas a espreitar uma suposta vítima. Algumas delas não percebiam o drama daquela existência findada naquele acidente, a maioria talvez. Estavam ali como em um espetáculo. E em um espetáculo ninguém tem compromisso, a não ser com seu prazer. Era isso que as expressões da multidão pronunciavam. Queriam saber detalhes, quem ela era, quem a atropelara, há quanto tempo, se já haviam chamado os bombeiros, se havia ali alguém da família... A morte havia proporcionado um momento de interação social.

Lembrei-me de um verso de Fernando Pessoa: “A alma humana é um abismo”. Sábio poeta. Um abismo onde tudo cabe. Nas dobras do ser se escondem sentimentos que fogem muitas vezes da nossa compreensão. Os mistérios se revelam aos poucos, se dão um por vez. Com calma, devagar, sentia a necessidade de desvendar o sentimento daquelas pessoas que ali estavam. Queria abrir uma pequena fresta para aquele sentimento se dar, buscava uma revelação. Com esse sentimento de busca, também fiquei ali por algum tempo. Admirava-me mais as expressões dos vivos do que a da morta. Era ali onde residia o mistério, a inquietação.

O que me resta diante de tudo é a perplexidade. Vejo-me atônito ao perceber que homem... ah, o homem! É um ser que nunca se mostra por inteiro.

Fábio Stoffels
Enviado por Fábio Stoffels em 06/05/2007
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