Orgasmo do Cérebro



 
                        " A felicidade do escritor é o pensamento que
                          consegue transformar-se em sentimento, é o
                          sentimento que consegue transformar-se com-
                          pletamente em pensamento". Thomas Mann  

 
 

  
 
 
 
 
                               Bem, meus amigos e amigas, passada essa semana com tantos feriados, sinto uma certa preguiça para imaginar uma boa crônica e que dê um certo prazer para os leitores.  Aliás, devo dizer que a mocinha que me serve as refeições do almoço saiu-se com uma que adorei. Na quinta-feira santa perguntei se a pensão iria fechar nesses feriados seguidos de abril, contando ainda com a quarta-feira, amanhã (feriado no Rio, dia de São Jorge).  Ela me respondeu na lata: - “Senhor,  só fecharemos na sexta-feira santa que é um feriado sério”, no que respondi prontamente: -  Certo, Carol, você está com toda a razão”. (pode-se cultuar o santo de devoção sem cair no exagero do feriado)
                        Devo dizer, talvez influenciado pela semana santa, que minhas lembranças se agigantaram novamente.  E me vi, mais uma vez, com meus 10 anos, em Caxambu, uma cidade , que é uma estação de águas minerais, no colégio interno dos padres Barnabitas.  Eram sete horas, manhã fria, todos os alunos na capelinha, onde seria iniciada a missa com o severo padre-reitor Sysnando.  Eu, no primeiro banco, com a cabeça raspada, para mostrar sinal de humildade, no meu primeiro mês de colégio, ainda um estranho no ninho, aguardava a chegada do padre no altar, que viria com o sacristão do dia, colega bem mais velho, com seus 15 anos, do quarto  ano ginasial . Era um rapaz muito alto, com feições já de homem feito, precocemente.  Até hoje sei o nome de todos aqueles meus colegas, mas esqueci o nome desse rapaz, talvez pelo susto que tomei. De repente, ouvimos um grito enorme de grande terror e uma queda no chão. Era ele, na sacristia, tendo um ataque epilético, já se debatendo todo no chão. Sabia o que era um ataque epilético, pois no Rio de Janeiro, no colégio Zaccaria, tínhamos um colega epilético. No entanto, o Henrique, era o nome dele, não gritava, nem caía, fica duro, imóvel.  Em fila indiana, os colegas maiores na frente (e o Henrique era o maior de todos) e os menores por último ( eu, o último da fila), muitas vezes a fila parava, inexplicavelmente. Era o Henrique, tendo o seu ataque epilético. O meu colega de Caxambu, uma semana depois do ocorrido foi mandado de volta para a casa dos pais e nunca mais retornou. O que sempre estranhei.
                        A epilepsia sempre foi mal compreendida até bem pouco tempo, uma doença considerada sagrada e cheia de mistérios. Hoje, felizmente, existem remédios que seguram a crise dos epiléticos. Mas como lembrança puxa lembrança quero dividir com meus queridos leitores um trecho do livro “A montanha mágica”, obra prima de Thomas Mann. Neste trecho, ele narra divinamente (e com certa comicidade) um ataque epilético, ocorrido num sanatório em Davos-Platz, na Suíça . Era o tempo em que a tuberculose matava. Penso não ser possível deixar de dividir com os amigos e amigas esta página de um grande escritor. Eis o trecho:   
 
"Um incidente pavoroso, que naquela época ocorreu durante uma das refeições, causou ao jovem uma impressão particularmente profunda. Um pensionista recém-chegado, o Professor Popov, homem macilento e taciturno, que tinha o seu lugar à mesa dos “russos distintos”, em companhia da sua noiva igualmente magra e silenciosa, foi tomado, no meio do almoço, por um violento ataque de epilepsia; lançando aquele grito cujo caráter demoníaco e inumano tem sido descrito freqüentemente, caiu ao chão e revirou-se ao lado da cadeira, nas mais horripilantes contorções, agitando os braços e as pernas. Acrescia a isso uma circunstância agravante: acabavam de servir um prato de peixe, de maneira que era de recear que Popov, no seu enlevo convulsivo, cravasse alguma espinha na garganta. O tumulto foi indescritível. As mulheres – em primeiro lugar a Srª.Stöhr, sem que, no entanto, lhe ficassem atrás as senhoras Salomon, Redisch, Hessenfeld, Magnus, Iltis, Levi, etc. – tiveram os mais variados chiliques, a ponto de algumas se igualarem ao
Sr. Popov. Seus gritos eram estridentes. Não se via mais que olhos histericamente cerrados, bocas abertas e corpos retorcidos. Uma única senhora preferiu desmaiar em silêncio. Houve crises de
sufocação, já que todos haviam sido surpreendidos pelo tremendo incidente no ato de mastigar e de engolir. Parte dos pensionistas desapareceu por tudo que era porta, também pelas do avarandado, não obstante o frio e a umidade que reinavam fora. Mas essa ocorrência tinha, além do seu caráter horrendo, ainda um cunho especial e chocante, em virtude de uma associação de idéias que se impunha e a relacionava com a última conferência do Dr. Krokowski. É que o analista, no decorrer das suas explanações acerca do amor como fator patogênico, tratara justamente na segunda-feira passada da epilepsia; esse mal que a humanidade, em tempos pré-analíticos, considerara alternadamente uma prova sagrada, até mesmo profética, e uma possessão do Demônio – o Dr. Krokowski qualificara-o, em termos ora poéticos, ora inexoravelmente científicos, de equivalente do amor e de orgasmo do cérebro; numa palavra, interpretara-o de tal forma que, aos seus ouvintes, o comportamento do Professor Popov, espécie de ilustração da conferência, afigurava-se como uma revelação descomedida ou um escândalo misterioso. Assim se exprimiu um certo pudor na fuga das senhoras. O próprio Dr. Behrens assistiu a essa refeição, e foi ele, com o auxílio da Mylendonk e de alguns companheiros de mesa jovens e robustos, quem retirou da sala o extático, azul, espumejante, rígido e desfigurado, e o transportou ao vestíbulo, onde Popov permaneceu ainda muito tempo sem sentidos, enquanto os médicos, a Superiora e outros membros do pessoal da casa se ocupavam com ele, antes de o levar numa padiola. Pouco depois, porém, viu-se de novo o Professor Popov, com a noiva, à mesa dos “russos distintos”, terminando, silenciosos e satisfeitos, o almoço, como se nada tivesse acontecido."
 
       Sem querer ser alarmista, parece que a humanidade, de maneira geral, passa por uma crise convulsiva e o mal generaliza-se e ninguém compreende mais nada. Não se vê no horizonte a "pílula" salvadora,  e , muitas vezes,  diante de tantos fatos horrendos acontecendo, sinto-me como se  já tivesse uma espinha de peixe cravada na minha garganta...