Ao sabor da memória

Moleque de escola, em tenra idade, às vezes chegava das aulas com as orelhas vermelhas, mais pela timidez de ter de prestar tantas tarefas do que pela incapacidade de fazê-las. Parava na casa do vizinho, a qual se comunicava com a nossa por um portão pelos fundos. Bastava Ribeiro me ver naquele estado e sentenciava: “- A professora puxou as orelhas desse menino”. E acrescentava puxões de um lado e do outro, e ria-se do malfeito. À minha volta todos riam, e eu ia para minha casa, um pouco triste, mas sem mágoas, porque sabia que ele gostava de mim... Outras vezes, eu lá chegava e almoçava com ele. Ribeiro, ajudando na cozinha, costumava enxugar a louça e não perdia a oportunidade de molestar-me com golpes rápidos e precisos de pano de prato, merecendo a condenação de Antônia, a zelosa mulher: “- Homem, não faz isso com a criança”. Ribeiro ria-se e lá íamos conversar ou ouvir músicas do Teixeirinha. Ouvíamos também futebol pelo rádio. A Copa de 66 foi uma tristeza para nós dois. O radinho chiava e Ribeiro ia comentando para mim os fracassos do escrete. Uma pena... Ele ia muito ao campo ver o Tupi, e eu ficava tão admirado de ver a coragem como ele xingava o juiz e os atletas em campo. Xingava, ficava sério e olhava para mim, como se passasse uma lição. Homem vê futebol é assim, percebe? Às vezes andávamos de carroça. Antes, Ribeiro tomava os cuidados com minha segurança; depois partíamos em pequenas viagens, das quais eu não gostava muito, mas a companhia era boa e me admirava a macheza como ele dava as ordens e puxava as rédeas. Uma epopeia na minha infância. Ribeiro era religioso. Fazia excursões à Aparecida e a Congonhas, e quase sempre me levava encolhido no seu cantinho sem sacrificar meus pais com a passagem. Ele perdia um pouco de seu conforto, mas devia valer a pena sacrificar-se pelo amiguinho e ensinar-lhe que Deus no céu fica atento a todos nós. Meus pais compraram televisão primeiro do que Ribeiro. Meu pai, muito brincalhão, dizia que antena externa era sinal de riqueza e que ia comprar primeiro a antena, o aparelho pouco importava. Acabamos comprando. Eu ia até o portão e gritava por Ribeiro. E foi em uma Stander Eletric que vibrávamos com o Botafogo de Gérson e seus companheiros. Um dia, ele comprou sua tevê... Retribuía sempre a gentileza, e seu assobio era o sinal de que me esperava para os jogos ou para a novela. Certa feita, ainda pequeno, meu pé ficou inchado por causa de uma farpa. Meu pai viajara e minha mãe se lamentou com o vizinho. Sobreveio o Ribeiro médico. Ele desinfetou caprichosamente o canivete e fez a pequena cirurgia, com precisão, com carinho, extraindo, depois de remover muito pus, a farpa que me adoecia. Um dia, ainda jovem e forte, Ribeiro adoeceu. Não tinha chegado aos cinquenta e cinco anos. Minha mãe dizia que era uma doença muito grave... E ele foi ficando magro e triste, e todos me poupavam de vê-lo no sofrimento. Faz tempo, muito tempo, e parece que foi ontem.