FIM DE TARDE - ENTRE OUTRAS QUALQUER.
- Oi que saudades, como você está ?
- Estou bem ...
- Estou te esperando na saída...esta noite você é minha.
- Mas...
Mas nada. Desligou o telefone sem me dar tempo de responder que hoje precisava dormir cedo. Pouco importa. Que venha. Até saberá bem, com certeza.
Saio do trabalho e ele está ali de óculos escuros a sorrir-me.
Chego-me a ele e vem aquele abraço apertado... de saudade.
Moramos perto e passam-se meses sem nos vermos nem nos falarmos. Procuramo-nos quando a mágoa nos carrega demais. Ele procurou-me...sinal que precisa de mim esta noite. Sinal que precisa do melhor de mim.
Entramos no carro e a musica prova-me que ele está triste, que mais uma vez foi derrotado numa batalha de amor. Pouco falamos... eu sei que entre nós, quase nunca são precisas palavras... há muito que passamos esse patamar. O silêncio não magoa nem fere.
Não pergunto onde vou. Temos sempre este ritual. Sei que vamos ver o pôr do sol, sei em que praia, sei em que restaurante vamos jantar...sei que vamos recuperar energias, carregar baterias para agüentar mais uns quantos abanões da vida. E dá sempre resultado.
A vista aqui é magnifica. Tão intensa.
No restaurante, à luz de velas, quase parecemos um casal apaixonado. E somos, à nossa maneira.
Falamos de tudo o quanto lhe consome a alma. Eu escuto cada palavra. E ele diz-me:
- Nestas horas não há com quem possa estar além de ti. Você me ouve. Diz as palavras certas que nem sempre são as que eu gostaria de ouvir. Falo contigo como sem pensar, falo de tudo... não sei como nunca acabamos na cama depois destes anos todos.
- Se isso acontecesse estragaríamos isto, não concorda? E depois, quem ia ouvir as tuas queixas em relação a mim? Há amigos que não consigo ver como homens e homens que não consigo ver como amigos... e tu sabes que quando encontrei um em que juntei os dois, acabei de aliança no dedo...
Adivinho-lhe o peito mais leve...sinto-o mais orientado.
Aos poucos vamos voltando às conversas sem sentido algum. Lembrando épocas e acontecimentos que de quando em vez nos trazem a lágrima... por felicidade. E rimos.
É num desses sorrisos que me diz emocionado:
- Num sorriso teu esqueço quase tudo. Quando ri assim, é como que se me oferecesse o que de melhor tens em ti. É esse sorriso que me faz lembrar sempre de ti. Custa crer que continua sozinha.
- Ora, sabe que ninguém me quer!. Mas você, com todo esse charme continua assim também. É amigo, leal, sincero, tem esse humor que me conquista e que deve conquistar todas as outras e no entanto...
- Elas escolhem sempre os filhos da puta.
- Tem toda a razão. No amor todas as tuas virtudes viram defeito. Seria tão fácil se pudéssemos escolher... seria tão fácil que nos pudessem ver...
- Você merece que te vejam...que vejam como realmente é. Ao longo destes anos tornaste-te numa mulher completa. Das mais completas. Nunca sabe muito bem o que quer, mas sabes perfeitamente o que não quer. E de todas você és tão simples. Talvez por isso tenham medo de ti. Não precisam de te oferecer seja o que for... basta que te amem e que sintam isso, basta que te digam as palavras certas e que acreditem nessas palavras.
- Tenho as mãos cheias de nada para dar... somos os dois uns gira-sós. A vida gira, gira e nós sempre sós.
Porque não posso amar alguém assim? Que traz a doçura estampada no olhar? Que traz na boca as palavras que o coração não cala?
Tiro um cigarro.
- Continua a fumar...
- Tenho que ocupar a boca com alguma coisa... na falta de algo melhor, fumo.
- Isso faz mal.
- O tabaco é como o homem: provoca morte lenta e dolorosa, ataques cardíacos por nos fo***** os cornos, provocam o envelhecimento da pele pelas neuras que causam, contêm uma quantidade enorme de merdas que causam dependência, há os que nos causam impotência, outros que são verdadeiros cancros pulmonares porque nem nos deixam respirar... e mesmo assim, para largar o vicio, muitas vezes precisamos de ajuda médica.
- Só tu para me fazer rir... mas isso quer dizer que continua a comer iogurtes...
- Sim, para lamber a tampa. Quero ver se não me esqueço das coisas...tenho que praticar. (risos)
Me deu a mão e saímos dali.
- Vamos?
- Claro... a esta altura não podemos quebrar o ritual.
- O que seria de mim sem te ter por perto?
É por ter perto de mim pessoas assim que sou feliz... pessoas que vêm o que os outros não conseguem alcançar, pessoas que me acompanham e que mesmo nem sempre presentes, a distância não consegue afastar...pessoas como ele... que através da amizade me ama da forma mais bonita que se pode desejar... a quem retribuo essa amizade com o melhor de mim, o melhor que sei, o mais que consigo...
Chegou perto de mim com a manta tão velha quanto isto que nós temos... isto que nem sei se é amor, amizade, cumplicidade ou tudo...
Descalçamo-nos e caminhamos pela praia tão escura...mas não sinto medo. Nunca senti medo a teu lado.
Dizes-me num tom baixinho como se tivesses receio que alguém possa ouvir:
- O teu olhar continua triste.
- Sem os meus olhos tristes e castanhos não seria eu. Você também estás de olhar tristonho. E ao mesmo tempo um olhar que só quer um pouco de carinho...olhar carente.
- E preciso... do teu.
A carência faz disto... ou a ausência de algo. O vazio que fica preso no peito, que não se consegue preencher...
- Não sofra por ela... se te magoa é porque não te merece. Ninguém merece o teu sofrimento...
- Nem o teu... mulher da lua. Lembra? Quando fugíamos pra cá? E eu te dizia que era teu aquele rosto de mulher que se vê na lua?
- Lembro, claro que lembro. De quantas vezes caminhávamos por este areal de mãos dadas no escuro, como hoje. De tantas vezes que me apertaste contra o teu peito só para eu chorar de amor. Contigo sempre consegui chorar... nunca precisei de esconder... recordo sim do toque das tuas mãos nas minhas costas, nos meus cabelos enquanto me encostava no teu regaço... Neste instante, se pudesse pedir um desejo, pedia que por mais anos que passem continuemos sempre a ver no outro o porto de abrigo.
- Eu também lembro. Das vezes que me dizias: chora. E depois me dizias: vamos semear girassóis?
- Sempre gostei de semear girassóis contigo... era o gosto de ver crescer o que ambos semeávamos. Tenho a falta dos girassóis... falta das longas cartas que me escrevias com letra cuidada para que eu pudesse perceber! Há quanto tempo não recebo uma carta! Mas isso foi no tempo dos segredos...
- Na idade da inocência...
Deitamo-nos na areia... sabe tão bem. Já nem sei se foi ele que me pediu carinho se sou eu que mandei o meu espirito procurá-lo para receber essa ternura. Já não sei...
Eu estava a precisar de ti... e você veio, mesmo sem eu te chamar.
- Tão boas estas noites! Com o som do mar... o céu estrelado, areia fria...
- Eterna...
- Desperta-me a mente... vêm as imagens de corpos nus... em noites assim apetece aquele sexo louco, desenfreado, quase selvagem. Aquele que quase nos enlouquece...sexo suado, de corpos entrelaçados... que nem se sabe muito bem onde começa um e termina o outro. Aquele sexo que nos apertam com medo de escorregarmos e fugirmos, sexo molhado, suado...línguas que se procuram e se querem. Sexo que se termina e se repete só porque podemos adormecer... e quando acordarmos o outro já não esteja lá... sabe?
- Sei... estamos muito sexuais hoje...
Rimos os dois como quem espera um amor que não se tem... como quem, mesmo assim, é feliz...
- Eterna... este céu com milhões de estrelas. Estrelas que estão sempre ali... e eu olho para ti e vejo que afinal, és tu quem mais brilha... e que estás tão perto...
Ficamos ali de ombros encostados... e a minha voz rompe o silencio:
- Me leva pra casa?
- Sim sempre.
Despedimo-nos num abraço apertadinho... e sussurra-me:
- Até amanhã.
- Até amanhã...
Eu sei que não será amanhã... eu sei que voltaremos ao ritual quando a vida nos massacrar a tal ponto que só no outro podemos esquecer, por um momento que seja, o quanto o mundo é cruel...
Sei que não é amanhã e isso não me entristece... porque sei que em alguns momentos ele pensa em mim, que sabe que estou aqui. Nem que seja para lhe oferecer um sorriso meu. Nem que seja para lhe dar a mão e caminhar a seu lado. Nem que seja para lhe dizer: chora.
Sei que será um dia... não amanhã... um outro dia qualquer.