Poções - Pelas estradas e pelo mundo

Tive a oportunidade de trabalhar em duas empresas de revenda de máquinas de terraplenagem. Estou completando dez anos na segunda empresa, perfazendo 32 no ramo.

Naturalmente viajei por toda a Bahia e Sergipe. Andei por boa parte do Brasil e duas viagens ao exterior. Fiz muitos amigos e ainda pretendo viajar por um bom tempo. Numa média, somando as distâncias, talvez tenha percorrido quatro vezes e meia a distância entre a Terra e a Lua.

Quem não tem o costume de viajar, acha que este tipo de trabalho é maravilhoso. Não posso negar, mas tem os seus momentos de dissabores, saudades, riscos e de ter que trabalhar em condições muitas vezes adversas e interessantes, como descer em uma mina subterrânea a 600 metros de profundidade.

Prazeroso como chegar defronte a Torre Eiffel e, no meio de gente do mundo inteiro, gritar: “Direto de Poções para o mundo! Me belisquem pra ter certeza que não estou sonhando!” (como tem brasileiro em qualquer lugar do mundo, alguém escutou e deu risada, aprovando a fala).

Poder viver a história de dentro do Coliseu dos anos 80dc contrasta com o sertão de Canindé do São Francisco, em Sergipe, ou acordar em Irecê ao meio de escorpiões.

Nas idas e vindas, nada melhor que achar um conterrâneo buscando dias melhores. Botar o pé na BR116 ainda é prazeroso, mesmo que o retorno seja uma tortura. Busquei algumas histórias que tem a ver com a nossa cidade e relato para vocês.

Truxe (1986)

Quem conhece São Paulo sabe a “monstruosidade” de cidade que é. Cheguei numa noite fria, 8 graus, e fui direto para o hotel Firenze na Rua Frei Caneca, no centro, onde encontraria um grupo de revendedores de máquinas de terraplenagem.

O pessoal que cuidou das reservas se perdeu e teve que misturar os baianos com os paranaenses, pois não havia mais apartamentos individuais. Precisava proteger do frio e liguei para a recepção pedindo cobertor. Quando a camareira chegou, perguntei:

- A senhora trouxe toalha?

- Truxe, respondeu.

Eu não podia imaginar que alguém pudesse responder de forma tão familiar naquela imensidão de cidade e, brincando, emendei:

- A senhora é de Poções?

- Sou, e o senhor?

- Eu também sou!

- Então tu não fala pra pai porque ele pensa que eu trabaio em casa de famia!

Salutaris 1 (1993)

Vez em quando eu viajava para Ouro Preto. Minha irmã Elisa morou lá um bom tempo. Um dia, saímos de carro às seis da manhã e a idéia era chegar à tardinha em Poções. Na BR116, no trecho de Minas Gerais, passaram cinco ônibus com a bandeira “Poções/São Paulo” em um espaço de duas horas.

Eu fiquei eufórico e passei a conjecturar. Um ônibus – deve ter sido o que saiu sete da manhã! Dois ônibus? – esse deve ser extra. Quando passou o quinto, falei em voz alta:

“Explodiram uma bomba atômica em Poções, nós não vamos encontrar ninguém lá”.

Minha irmã dormia e acordou assustada. Expliquei o que estava acontecendo e falei:

- Calma, isso deve ser arte de Jió, o agente de Poções. Ele resolveu liquidar as passagens e é a oportunidade do povo se mudar para São Paulo.

Salutaris 2 (1993)

Dessa vez eu estava em Ouro Preto e viajei para São Paulo a fim de batalhar representações industriais. Na volta, sexta feira, resolvi passar o fim de semana em Poções. Fui pegar o “carro” (o ônibus) na estação do Tietê por volta das oito da manhã.

Se “truxe” é expressão familiar, imagine o ônibus cheio de crianças e bagagem por todo lado. Viajei na poltrona 18 e o passageiro da 14 pendurou a camisa suada no encosto da cabeça, deixando o odor pra trás. Resolvi encarar a viagem quando o vizinho da 17 sacou uma caixa plástica com farofa de ovo e carne e me ofereceu. Não havíamos chegado na Dutra e a festa tava começando. A caixa da farofa foi parar na poltrona 9 e as duas crianças traçaram o conteúdo. O balanço do ônibus ajudou a um deles mandar tudo para fora. O corre-corre para abrir a janela denunciava o excesso de farofa, enquanto meu vizinho tratava de fechar a dele.

Pouco depois do meio-dia chegamos em Três Rios-RJ, onde era a sede da Salutaris. Não sabia se queria almoçar ou se tomava um refrigerante com uns três sanduiches que levava dentro de um saco. Me lembrei da época de estudante, quando viajava para Salvador. Minha mãe colocava fritada de ovo com pão na merenda e normalmente eu não comia durante a viagem para não exalar o cheiro da gordura.

Desisti da idéia de comer e dei uma volta no ônibus estacionado, que parecia uma miss com aquela faixa estendida. Falei com o fiscal e mandaram lavar de imediato.

A viagem seguiu normalmente até Poções, mas a camisa do vizinho não saiu do lugar. Acho que acostumei com o cheiro e não liguei mais.

A alegria de retornar e a expectativa de chegar se misturam e as adversidades da viagem são superadas.

Salutaris 3 (2006)

Fui a Poções passar um final de semana com a minha mãe. Estivemos em Morrinhos e depois na barragem. Fiz fotos maravilhosas de Dona Ana e das raízes do aipim que Michele plantou em Morrinhos.

No domingo, voltamos para Salvador no ônibus da Salutaris, aquele que sai às onze da manhã. Desembarquei e esqueci a máquina fotográfica na poltrona. Quando me lembrei, já havia se passado quinze minutos. Saí como uma bala. Deixei Bete esperando o irmão que ia nos dá uma carona e voltei para a plataforma, não mais encontrando o ônibus. Ligamos do guichê e também não acharam a máquina. Fui na garagem às 6 da manhã do dia seguinte e nada. O ônibus já havia viajado no dia anterior.

Que o nosso atento passageiro tenha a possibilidade de ler o site e mandar, pelo menos, as fotos via email. Em troca, mando o carregador das baterias que está sem utilidade mesmo. O que sobrou.

Aprendi que não se pode confiar em cara bonita. Ladrão é ladrão.

Rodoviária de Jequié (2005)

A história é de 2005 mas a baldeação na Rodoviária de Jequié é antiga. O cidadão tomava um ônibus em Poções e quando chegava em Jequié, havia uma placa redonda escrito “baldeação”, que significava trocar de ônibus.

Acho que fiquei traumatizado e perco a paciência quando o ônibus, mesmo lotado, tem que entrar em Jequié. A gente ouve do motorista: - Trinta minutos para o almoço! De madrugada, o bendito do fiscal entra no ônibus e vai “contar o carro”. É de arrebentar. Se faltar um carneiro, ele acorda as ovelhas e os bodes pra perguntar onde está.

Na Rodoviária de Jequié tem duas coisas que eu gosto. Uma delas é a pipoca. A outra são os torniquetes. Meu amigo Domingos Schettini (é de Santa Inês e não tem parentesco com os de Poções) me pede para ver qual a diferença entre as numerações dos torniquetes de entrada e de saída. Diz ele que é a forma de saber se Jequié está crescendo. Se houve debandada ou crescimento, imediatamente eu ligo e a gente morre de dá risada.

Fora a Rodoviária, eu gosto de Jequié. Sempre falei isso para meu amigo João de Capitão, empresário do ramo de máquinas

RSSilva (2005)

A parada é boa. Como ficou a fama de careira, eu ainda me dou o luxo de levantar de madrugada para pesquisar os preços dos produtos. As vezes eu penso que não é luxo e sim não acreditar que é verdade o valor de cada mercadoria. Shampoo Seda de R$ 15,00. Água Mineral de R$ 3,00. Jornal a Tarde de R$ 4,00 enquanto é tabelado em R$ 1,75. O preço da água de côco daquelas maquininhas eu nunca tive coragem de perguntar. Alguém sabe quanto custa a “touquinha” de laranjas descascadas e o colar de coquinho que é vendido junto com a rapadura? Bruno Gaso garante que o produto mais barato é o espetinho de frango ao preço de R$ 1,50.

O Sundae de Gandú (1974)

Pouco depois de inaugurada a BR-101, viajamos no fusca verde de Michele, cuja placa era AC-7743. Modelo 1300L, cor verde, painel com revestimento que lembrava madeira e as descargas adaptadas com velhos amortecedores cortados e soldados. Uma barulheira.

Quem dirigia essa máquina de fazer zoada era Edson Exler, nosso amigo de anos. O destino era Itabuna e Ilhéus para o final de semana. Passamos em Gandú, de madrugada e com fome. Paramos em uma lanchonete de um posto de gasolina ainda em construção.

Edson pergunta:

- Moça, tem sundae?

- Claro, o Sr. quer de quê?

- Tem de quê, mesmo?

- Sai sandeiche de presunto, sandeiche de queijo e sandeiche de misto. O Sr. vai querer de qual?

Edson olha pra mim e pra Michele, olhos bem abertos, responde:

- Faça um de cada!

Ciferal (1969)

A Ciferal hoje pertence a gigante Marcopolo, lá de Caxias do Sul. Antigamente, era uma das poucas indústrias de carrocerias de ônibus do país. Em todos os ônibus fabricados por eles, existia uma plaqueta logo abaixo do para-brisa dianteiro escrita a palavra CIFERAL.

Me lembro que um dia estava indo para Poções e na parada de Milagres havia vários ônibus estacionados e Moacyr Magalhães, Siri, comenta para Pepone - “Esse Ciferal é um retado, todo ônibus é dele”.

Chico Picolé (2002)

Chico Picolé, filho de Dorival e sobrinho de Otoniel Monteiro Costa, é uma figura lendária de Poções. Chico sumira e ninguém mais soube do paradeiro.

Ganhei uma semana de férias em Gramado-RS. Eu e Bete fomos conhecer cidades como Garibaldi, Bento Gonçalves e Carlos Barbosa. Manhã fria de uma terça feira, o ônibus parou para uma visita ao parque florestal da cidade de Nova Petrópolis. Enquanto saltava do ônibus, ouvi alguém falar:

- Tem poçõense perdido em todo lugar do mundo, até no interior do Rio Grande do Sul.

Me surpreendi com aquelas palavras e reconheci debaixo dos óculos escuros Chico Picolé, irmão de César, meu colega de escola. Passamos um dia maravilhoso e a noite batemos altos papos acompanhados de “fondue” e algumas garrafas de vinho chileno.

Prometemos nos encontrar quinze dias depois na festa do Divino. Ele foi e eu não.

Paulo de Aníbal (1977)

Voltava de Barreiras. Época de chuvas e lamaçal em toda a região. Viaja num fusca Fafá de Belém e morrendo de medo de ser assaltado. Passava por Cotegipe e uma mão acenava pedindo por ajuda. Quando vi aquele rosto familiar, parei de imediato – era Paulo de Aníbal (Aníbal Carvalho foi prefeito de Poções) amigo de infância e não via há anos. Nos abraçamos e ele pediu carona para levar o amigo dele até o Zuca (entroncamento de Ruy Barbosa). Paulo caiu do céu – resolveu o meu medo, pensei.

Quando subia a serra do Pai Inácio, já próximo a Lençóis, o amigo de Paulo tirou da sacola um 38 cano longo e me disse: “Fique tranqüilo, faça o que eu mandar”. Eu gelei e imaginei que era chegada a minha hora. Tranqüilamente, ele direcionou a arma para fora do carro e disse “Pode subir em paz, ninguém vai nos incomodar”.

O capataz

Mais ou menos na mesma época da história de Paulo de Aníbal, viajava entre Ibotirama e Barreiras. Furei o pneu do fusca e parei numa pequena borracharia para fazer a força. O borracheiro perguntou se poderia dar carona a uma pessoa amiga dele, capataz de uma fazenda da região. Não conhecia o borracheiro e tão pouco o amigo dele. Não ia me arriscar. Além de desconhecido, o cidadão estava com uma pistola dentro de um saco.

Enquanto disfarçava e procurava uma desculpa para não dar a carona, perguntei ao amigo do borracheiro quem era o patrão dele e respondeu:

- É um menino lá de Poções.

- De Poções? Quem é?

- Ricardo Benedicts

- Esse menino eu conheço. Eu levo você. Vamos logo com o pneu pra não ficar de noite.

A “pedra” de Michele (1999)

Em Itapebí estava sendo construída a barragem no Rio Jequitinhonha. Viaja em companhia de Fernando Susin (Randon) e o amigo e parceiro Tenorin Tôrres. Era uma manhã de sábado e saímos da obra com hora marcada para chegarmos no aeroporto de Porto Seguro. Eu precisava chegar para um churrasco aqui em Salvador. Viajávamos em um Gol bola e o mangote superior do radiador estourou, superaquecendo o cabeçote. Precisávamos de água a cada quilometro.

Pedimos ajuda a um caminhoneiro que passava. Boa praça, parou e se prontificou a ajudar. Ví que a placa do caminhão era de Dário Meira. Pensei logo: Tô em casa! Puxei conversa e falei que era de Poções e que meu irmão morava lá. Ele começou a disser que dirigira Kombi na linha para Conquista e que Michele era “pedra” dele, pois dava preferência nos fretes de mercadorias.

Era o Gol parar e o motorista (não me lembro o nome) de óculos fundo de garrafa encostar para gastar a água do carotinho e atrasar a viagem do novo amigo. Foram duas horas para andar quarenta quilômetros até chegar em Eunápolis. Tenorin foi consertar o carro. Meu vôo já tinha ido e peguei um ônibus para Itabuna e adeus churrasco. Fernando foi de táxi para Porto Seguro arriscar um avião para Caxias do Sul.

De qualquer forma, mais uma vez, fomos salvos pela pela solidariedade poçõense.

Faróis amarelos (1977)

A moda era andar de fusca com os faróis pintados de amarelo, “coqueluche” da época. Eram caríssimos.

Trabalhei algumas semanas em Guanambi e tive o apoio do amigo poçõense Fulgêncio Conrado (Lô), irmão de Orlando Tonél. Me convidou para um churrasco na fazenda de um amigo dele e logo apareceu um sujeito que pintava os faróis de amarelo, iguaizinhos ao modelo Cibiê. Paguei o correspondente a dez garrafas de cerveja, mas o serviço ficou caprichado.

Na volta da fazenda, contrariando a improbabilidade, caiu uma daquelas chuvas de final de ano da região de Guanambi e quando chegamos na cidade a tinta do farol tinha dissolvido – era iodo. Fiquei muito irritado com a minha ingenuidade e comentei o fato com Fulgêncio. Ele me disse:

- Aquele cara é da família de fulano, lá de Poções. Você não reconheceu pela cara?

Nota: (a família é boa, mas o cara é um tremendo picareta. Desculpem, mas não posso revelar o nome do #@#@#@).

(Dedico esta coluna ao meu amigo Papel, o bom humor ambulante, aquele que representa o espírito poçõense em todas os lugares que anda).

Luiz Sangiovanni
Enviado por Luiz Sangiovanni em 07/05/2007
Reeditado em 14/02/2009
Código do texto: T478789